O DIA QUE NÃO TERMINOU Ao filho que não vi sorrir
   23 de março de 2023   │     16:21  │  0

 

HÁ, NA CASA DE ARGEMIRO, um arremedo de oratório na sala de estar. Um nicho que lembra os que ainda puderam ser vistos nas ruínas tostadas de Pompeia. Mas somente para quem olha de longe. Quando se apura a vista, logo se vê que o de cá não tem nada a ver com os de lá. Bem comparados, a afinidade não vai além de uma acanhada aparência.
No de Argemiro não há divindades domésticas, como as que teriam sido arranjadas nos relicários que escaparam da fúria do Vesúvio. O que há são imagens miúdas, de apenas sugerido feitio humano, que se esforçam para significar a gente da casa: os pais, os filhos e os netos. Também os dois gatos que, a depender do humor, atendem por Marília e Dirceu. Ela, com sua veste branca que nem alvaiade; ele, de um louro esbanjado e apenas traído por um borrifo moreno que lhe pousa na fronte.


Salvo as estatuetas dos gatos (que honram as maquetas felinas), as outras todas são iguais pelo talhe original: não têm nem pernas nem pés nem braços nem mãos. Os corpos resumem-se a cones esguios, em cujos vértices estão escanchadas cabeçorras que não exibem orelhas nem narizes. As pestanas e as sobrancelhas são riscos à mão livre; as bocas também são fingidas e não passam de traços de um vermelho esmorecido.
Mas o que importa, mesmo, é que cada uma das peças que caricaturam fulano ou beltrano exibe algum sinal que diz do jeito, do gosto, das manias ou de qualquer cacoete que certifique uma pista do modelo de carne e osso. Quanto a Argemiro, por exemplo, temos a nudez do teto do crânio e o cavanhaque obsoleto que contracena com o acanhado bigode cinzento; quanto à mulher, que acode por Catarina, lá estão os cabelos dourados de arranjo e o trancelim franzino pendurado no pescoço, de onde pende uma gema verde-esmeralda; quanto aos outros, um boné, uma boneca, um livro, um violão, uma bola, um joystick e por aí vai. Pormenores em cores quentes e contornos em azul prussiano.
Deu-se que, há pouco menos de um ano, a imagem de Catarina, um dia atrás do outro, começou a amanhecer tombada, como se algum intrometido buliçoso a tivesse irreverentemente derrubado. E, por mais que se catasse um pretexto para culpar alguém (já que na hora de forçar uma delação a verdade pouco conta), não havia quem pudesse explicar de onde e por ato de quem vinha tal desaforo recorrente.
Foi só depois de um sonho sem pé nem cabeça, em que uma criança de colo se esperneava e aos prantos lhe cobrava o peito, que Catarina se deu conta de que a família, no simulado santuário, não estava de um todo completa. Faltava a imagem de Beatriz, a menina que não vingou e que havia vindo para ser a primogênita entre os irmãos que, agora, estavam multiplicados numa fieira de sobrinhos.
E tudo porque nem nasceu viva e bulindo. Lembrá-la? Só uma vez perdida. Ainda assim, enquanto Argemiro e Catarina estavam sozinhos, trancados no quarto de dormir, de modo a que os outros filhos não pudessem escutá-los. Até pareciam feridos por um ciúme doentio. Aquela dor era somente deles e acabou-se.
O resultado é que, para os irmãos, Beatriz jamais existiu. Ou, quando muito, era personagem quase lendária de um enredo que se passou em um tempo ancestral.
Por isso mesmo que Catarina e Argemiro, embora com a consciência pesada, deixaram de fazer Beatriz presente por um daqueles ícones de indecisa forma humana. Já os irmãos, como seria de se esperar, nem se deram conta de que alguém estivesse faltando.
Ela está passando um recado, choramingou Catarina, enquanto mordia o abanhado da fronha. Está inconformada. Acha que foi ignorada de propósito. Só pode ser isso. E argumentou, aos ouvidos já adormecidos de Argemiro, que tal amuo fazia todo sentido. Até os gatos estão lá, suspirou, enquanto assoava o nariz. Só pelo fato de uma criança não ter sobrevivido ao parto não quer dizer que nunca tenha existido. Além do mais, se o esquecimento magoa, a indiferença esmaga.
Daquele dia avante Catarina não teve mais sossego. Levava os dias inteiros com aquele peso no juízo. E, quando à noite ia pra cama…. cadê adormecer? Passava um tempo sem fim a se mexer de um lado para o outro. Houve noites em que nem chegou a pregar os olhos.
A bem dizer, todo trajeto daquele dia funesto em que Beatriz chegou sem ter chegado era repassado como se fosse um interminável filme de suspense. Tomava conta da sua mente e lhe enxotava o sono. Eram lembranças tão vivas (mas tão vivas, mesmo) que parecia que tudo havia acontecido na véspera. E Argemiro sofria do mesmo mal, embora não desse o braço a torcer.

NÃO SE SABIA AO CERTO O DIA DO PARTO. Nem mesmo Catarina, cuja barriga já quase lhe roçava o queixo. A não ser pelos cálculos do Doutor Fortunato, médico que vinha vaquejando a gravidez desde quando anunciada. O que fazia de favor, diga-se de passagem. Como se sabe, porém, esses cálculos já são feitos com a sina de serem desacreditados.
O certo é que, pelo jeito, só faltava mesmo o mando da natureza. E ela não se agrada dos que caem na tolice do atrevimento de ensaiar apressar-lhe as passadas. É ela quem sabe a hora de tudo o que se sujeita aos seus decretos: do vento ficar emburrado, desmanchar o sossego das cabeleiras dos coqueiros e alvoroçar as águas da enseada da Pajuçara; das aves de arribação se inquietarem, azeitarem as asas, alçarem-se às rodovias que percorrem a vastidão dos ares e darem começos às suas romarias instintivas; dos cometas jogarem fora o diadema e a cauda, conformarem-se com o jugo do efêmero e finalmente se aposentarem.
E é também assim com os instantes da semeação discreta e da inauguração explícita da vida. Quanto à morte, nem tanto. Ou pelo menos nem sempre. As escolhas do vivente, aqui e ali, podem desarranjar a rota e prematurar a cena derradeira.
Pois não é que tudo se deu segundo a mesma receita? Isso mesmo. A criança já estava pronta e, por isso mesmo, afobada para se despedir da montadora. Pelo menos a tirar dos rebuliços que vinha encenando, tais os pontapés de tudo o que é jeito. A ponto da barriga de Catarina (com perdão das más palavras) parecer um lençol estendido sobre uma excitada corda de caranguejos. Só que a natureza ainda não dera a ordem para que se abrisse a porteira por onde a criatura seria despejada no desassossego do mundo.
Não valia a pena aperrear-se. Nem adiantava. Muito menos dar uma de cavalo do cão e meter os pés pelas mãos. Quem desafia a natureza decreta a própria ruína.
Mas a infanta ainda não sabia nada disso. A tirar dos ruídos indecifráveis e das vozes abafadas que vinham lá de fora, o seu mundo se bastava com o poço de águas pacatas em que vivia submersa. Nunca havia passado de uma mergulhadora sem medo de ter medo, cativa a uma mangueira que lhe nascia na barriga e ia se agarrar na parede protetora da cisterna que a abrigava. Talvez vice-versa.
Acontece que a mangueira, de uma hora para a outra, inventou de lhe laçar o pescoço. Talvez por causa de uma daquelas cambalhotas com que ela aprendera a se amostrar, no intento (que agora deveria reconhecer imprudente) de chamar a atenção da mãe e de quem mais se interessar pudesse.
A vida pode ser petulante. O braço que ampara é o mesmo que algum dia poderá espancar. A mangueira que alimenta o nascituro poderá ser a mesma que o venha a estrangular. Quem vai viver, porém, assombrado com o que se esconde por traz de muros que podem não passar de empecilhos imaginários? Viver já é por si só se arriscar.
Não posso dizer se ela, pois que pelo que já se sabe era uma menina, ao menos tentou escapulir daquela laçada hostil. O fato é que, se o fez, ficou num ensaio fracassado. Talvez, até, nem tenha atinado que a mangueira poderia se dobrar a tal ponto que empatasse a entrega de suprimentos. Ou mesmo a enforcasse na hora de escorregar para o lado de fora. Na certa, porém, ainda não se dera conta de que, mais dia, menos dia, não mais teria quem respirasse por ela. Deixou correr. Ou, simplesmente, se rendeu ao descaso.
O que acho, mesmo, é que lhe passou despercebido que a natureza, manhosa como ela só, poderia estar a lhe armar uma arapuca. É muito curta a distância entre ser guardião ou predador.

NAQUELA NOITE, ENTÃO, vieram as águas viscosas que lhe escancararam o passadiço de que agora se dava conta. Chegou a ver o naco de luz que, lá de fora, a convidava para as surpresas da existência.
Seria de imaginar que a vizinhança da liberdade a deixasse mais afoita e, mais do que ligeiro, tomasse o rumo do clarão que a convocava de longe. Mas não foi assim que se passou.
De repente, sem mais nem menos, creio que lhe bateu uma cega suspeita de que ainda não estivesse pronta para desafiar os súbitos que a aguardavam do lado de fora. O que, apesar de tudo, não era de espantar. Não é fácil, para ninguém, aventurar-se nas incertezas do desconhecido. A liberdade, por mais que só prometa proveitos, tanto pode trazer a alforria como a servidão, a exaltação da vitória como o desconsolo da derrota.
A verdade, contudo, é que não era caso em que lhe fosse emprestado o benefício da dúvida. A natureza, tão generosa quanto às vezes tirana, não admite ser contrariada. Era chegada a hora dela se desfazer, ainda que a contragosto, do conchego do ninho, abrir o berreiro e iniciar o aprendizado que a levaria a caminhar com os próprios pés. Chegara ao fim aquele luxo de receber tudo de mão beijada.
Seria precipitado tentar antever, inclusive ela mesma, em que viraria quando crescesse. Talvez uma artista, o que quer dizer uma lavradora do encanto com tintas e pincéis, martelos e formões, sustenidos e bemóis, rimas e cadências, canetas e papel ou teclado e computador. Ou, quem sabe, uma magistrada com seu apostolado de realizar a justiça, tão sensata e ponderada. Se não mais do que os devotos mensageiros alados do sempiterno. Mas poderia ser uma médica, a cumprir a missão humanista de consolar os enfermos, atiçar-lhes a esperança e curar-lhes as mazelas do corpo e da alma. Sem que deixasse de correr o risco de se meter com os salvadores da pátria: aquelas mulheres e aqueles homens que vendem a alma ao diabo, quando se trata de abocanhar o poder e dar-lhe a serventia, fingidamente, de afugentar a opressão, extinguir a fome e sacramentar a igualdade entre os homens.
Nada disso passava pela cabeça da menina. Por isso mesmo fincou pé. Haveria de esticar a moradia na barriga da mãe. Até quando desse. Lá tinha casa e comida, estava sempre bem aquecida e não carecia de fazer esforço, nem mesmo para respirar. Por que se lançar às cegas a uma aventura que poderia findar não dando certo? Tanto mais quando se tratava de uma empreita que não admite arrependimento e muito menos que se deixe o dito pelo não dito e se engrene marcha à ré.
Danou-se a fazer malcriações. Chegou ao ponto de ficar atravessada na frente da porteira, disposta a não ir nem pra frente nem pra trás. Seria diferente, talvez, caso tivesse como saber da aflição que se encompridava lá fora. Com mais certeza, ainda, desde que pressentisse que a sua resistência poderia decretar que desvivesse sem ter vivido. E ainda encomendar o enterro da mãe, a mulher que lhe alugava o ventre e suportara, por meses a fio, as suas caprichosas requisições. Logo a mãe, que a tinha como talhada prodigiosa da sua própria carne.

NÃO MAIS HAVIA COMO ENGANAR O TEMPO. Chegara a hora. Beatriz encontraria a luz nas mãos do mesmo médico que medira, desde os começos, o enérgico cavalgar do seu coração.
Catarina mal teve tempo de chegar à maternidade. E ainda se viu condenada a suportar o cruel remanchado da espera, num corredor onde outras tantas mulheres se contorciam, que nem ela, num angustiante vexame. O que poderia ter sido bom, para a menina, pelo precoce aprendizado do quanto desumanos são os humanos. Teria visto aquele monte de gente de branco a passar para lá e para cá. Mas era como se ela e as outras não fossem vistas.
O que fazer? Para os crentes, rezar. Para os descrentes, resignar-se. Para os rebeldes, infectar-se pelo veneno da ira que não levaria a lugar nenhum. Para os que mandam… fazer de conta que não têm culpa por tanta provação atirada nos costados dos humildes e dos apenas remediados.
Pois é… Desde o começo do mundo que a humanidade não se constrói com retóricas de promessas benevolentes. Os nobres desfrutam as benesses que não fazem por merecer; os desabastados amargam a indiferença dos que os têm sob os calcanhares. A igualdade entre os homens continua sendo a mentira mais bem contada pelas leis, pelas sentenças redigidas numa linguagem sinuosa e encharcadas de um latinório exaustivo. E ainda pela eloquência que se derrama dos palanques eleitoreiros, das ostentosas tribunas onde estão os profetas do paraíso na terra, das bancadas aparatosas das chamadas casas da justiça… Até mesmo, por incrível que pareça, de certos púlpitos de onde doutrinam alguns autonomeados embaixadores plenipotenciários da divindade.
O pior era que o médico não aparecia. Pelas notícias que chegaram, estava bem sentado numa das cadeiras da tribuna de honra do Estádio Rei Pelé, de onde assistia uma partida de futebol entre o CSA e o CRB. E não sairia de lá de jeito nenhum. Nem que chovesse canivete. Era presidente do time vermelho e branco.
A parturiente é nova e aguenta, vomitou ele, atrepado na soberba de quem se acha infalível. A partida ainda está no primeiro tempo. Quando terminar eu dou um salto lá, prosseguiu com odor de majestade. Se a coisa apertar, acho melhor que chamem outro médico.
Argemiro tomou a sugestão como sendo um ultimato. Até porque estava mais do que claro que não dava para esperar a boa vontade do Doutor Fortunato. Era chamar um outro médico, fosse ele quem fosse. Talvez acertasse num daqueles que não declamam, em vão, o venerável nome de Hipócrates.
Deu certo. Desligado o telefone, não se passaram mais de vinte minutos para que o Doutor Miguel Arcanjo riscasse por lá. Era um homem dos seus cinquenta e poucos anos, alto, bem-apessoado e, pelo visto, abençoado com um explícito bom humor. Raros cabelos brancos intrometiam-se numa farta cabeleira de um negro expansivo. A voz era mansa e aqui e ali quase evadida. Examinou Catarina de cima a baixo, sondou os compassos no pulso e no peito, tateou o ventre retesado, explorou-a por dentro e veio com a sentença: Ou salvamos a mãe ou a criança.
Fosse essa sinistra verdade levada a Catarina, pode ter certeza de que ela haveria de preferir correr o risco de virar defunta do que arriscar a sobrevivência da filha. Coisa de mãe, pelo que se sabe de sobra. Mãe é uma fonte copiosa e inesgotável de amor e renúncia.
A decisão sobrou para Argemiro. A mãe ou a criança? E se o médico estivesse sendo precipitado? Haveria a possibilidade de que ambos saíssem vivos? Por que já ir dizendo que seria uma ou outra? O que seria dele com aquela menina e sem Catarina para compartilhar a alegria de vê-la traquinar e crescer? O que seria de Catarina e ele sem aquela filha para dengar? É sabido e ressabido que a chaga rasgada pela ausência de um filho ou de uma filha não tem como ser curada. Por que não se poderia tentar, ao menos, salvar as duas? Ficou nisso.

NÃO HOUVE JEITO QUE DESSE JEITO. Argemiro nem pôde escutar o vagido inaugural da sua primogênita. E não ouviu porque não houve. Uma enfermeira até que improvisou um batismo, na esperança de um milagre. Mas não vingou. Segundo alguns linguarudos, porque teria invocado um santo que não estava de plantão. Mas isso só pode ser tido como um disparate. Não dá para acreditar que um santo (dos que se dão ao respeito) se aproveite das leis dos homens para inventar um impedimento ou uma incompetência que lhe justifique negar um amparo piedosamente requerido. Quando pouco remeteria a petição ao bem-aventurado plantonista, de modo a que o cristão não ficasse a ver navios. Mesmo que, mais tarde, a súplica fosse indeferida. Se é dito que a pressa é inimiga da perfeição, também se diga que a vagareza é rival do respeito ao próximo e do sentimento de justiça.
Ainda bem que Argemiro pode abraçar a pequenez da criança inanimada, o seu corpo nu que dava a parecer de um infante recolhido na manjedoura da lapinha de Tristão Ventura dos Anjos. As faces vinham inundadas por um tímido lilás; as pálpebras, ainda mais violáceas, escondiam os olhos que jamais veriam a imponência da lua cheia; os lábios cerrados ficavam no equivocado prenúncio das palavras que não seriam ditas. Foi o que sobrou da aguardada filha que Catarina e Argemiro tiveram sem tê-la.
Mais torturante, ainda, foi o desconsolo de Argemiro ao carregar, em seus braços trêmulos, o caixão em que sua filha dormia o sono prematuro. O tampo do ataúde ia ensopado pelas lágrimas que narravam o desespero daquele pai amputado. Aquela criança cuja vida fora deposta por um descanso irreversível de quem não tivera nem tempo para viver. Nem que fosse um tico que fosse, para que pudesse se encantar com um único amanhecer.
Que ela possa me perdoar, ainda hoje geme Argemiro. E confessa, com lacrimoso arrependimento, que nem pôde ver a primeira pá de areia que interditou, de uma vez por todas, o sorriso, a voz, o olhar da filha que não teria a sorte de algum dia se apaixonar. Depois, o oco dilacerante do berço virgem, com aqueles pendentes lúdicos que enfeitariam a inocência da infanta, a inutilidade das mamadeiras, das chupetas, das toucas, dos brinquedos e das roupas coloridas que estavam ansiosas para vesti-la.
Vendo o trapo em que virou Argemiro, fique certo de que eu não agouraria, com igual tormento, o mais odiado dos meus inimigos. Se é que os tenho. Mas não ter inimigos declarados não quer dizer não os ter. A desafeição dispensa confissão. Ela é, de comum, mais irmã da dissimulação do que da franqueza. Ou alguém já esqueceu de Brutus, o filho postiço de Júlio Cézar, e do beijo de Judas Iscariotes?
Mas é isso no que dá a desumanidade dos homens, sussurra sempre Argemiro. E vai sempre mais longe, denunciando que há homens que até matam por vaidade, por capricho, por avareza, por indiferença ou por pura e simples malvadez. Embora Argemiro saiba, muito bem, que não foi nem será o único pai dilacerado por tamanha amargura. Aliás, de que nem foi o primeiro nem foi o derradeiro.

VER A ESTATUETA DAQUELA FILHA, finalmente, a ocupar aquele lugar que desde sempre foi dela… ninguém me diga que não trouxe algum consolo e um certo sossego às consciências de Catarina e Argemiro. Catarina chega a dar certeza de que, uma certa noite, deu de frente com aquela menina a contemplar o nicho que não era rigorosamente um sacrário. Já estava um tanto crescida, admitiu Catarina, mas era ela. Eram de Beatriz aquele olhar manso com que a olhou e cândido aquele sorriso que sorriu, enquanto a sua presença virava fumaça e se desmanchava no ar. Coração de mãe não se engana, garante Catarina. Era do jeitinho como eu sempre imaginei que ela seria.
Argemiro não acreditou nem deixou de acreditar. Sempre duvidou das histórias de visagens e assombrações. Naquele caso, contudo, não teve como não torcer para que fosse real. Não sabia explicar. Mas a verdade é que lhe trouxe algum alívio. A dor sempre dói menos quando podemos fingir que não dói tanto quanto poderia doer. E poder crer que sua filha estava com eles, ainda que não pudesse vê-la, ouvi-la e abraçá-la, já fazia bem menor aquela mágoa que nunca havia deixado de lhe triturar a alma. Fosse onde fosse; estivesse onde estivesse.
Uma coisa, porém, pode-se garantir: Argemiro passou a falar sobre aquele calvário sem se engasgar e tropeçar nos soluços. Inclusive com os filhos e os netos. A memória, enquanto a tudo faz eterno, resgata as alegrias e amortece as penas.
O que sei, pelo que me disse Catarina, é que, uma vez incluído o ícone de Beatriz no concílio, tudo mudou: Marília, a gata de veste branca que nem alvaiade, antes deitada, com as patas dianteiras retraídas e recolhidas, já no dia seguinte acordou sentada e altiva, a cabeça girada e erguida, os olhos grudados na imagem da menina; a estatueta de Catarina nunca mais amanheceu estendida e parecendo rastejar, como se algum intrometido buliçoso a tivesse irreverentemente derrubado.
E também sei, até por experiência própria, que Argemiro está coberto de razão. Ao menos quando diz, embora já passados mais de cinquenta anos, que aquele dia trágico não terminou nem vai terminar nunca mais.

Ponta Verde, setembro de 2022

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About Carlos Mero

CARLOS MÉRO nasceu em Penedo (1949). Membro da Academia Alagoana de Letras, do IHGAL e da Confraria Queirosiana (PORT.). Já integrou o Comité Scientifique da Revue REFLEXOS - Université Toulouse Jean Jaurès – FR.). Principais publicações: O Beco das Sete Facadas e outras estórias alucinadas (Contos). São Paulo: Marco Zero. 2005 - A lua de fel do casal Valhamor (Conto). Revue L’Ordinaire Latino-Americain, nº 212/2010, Université de Toulouse II – Le Mirail. - O amargo regresso da desesperança. Revue Caravelle nº 96/2011 - Université de Toulouse II – Le Mirail - Travessias (Contos - coautora: Cristina Duarte-Simões). Maceió: Viva. 2013 - Graciliano Ramos: Um monde de peines. (Depoimento). Lille (Fr): The BookEdition. 2015 - A deserção de Maíra (Novela), in Inventando Maíra S. Paulo: Scortecci. 2016 - O chocalho da cascavel (Contos). S. Paulo: Scortecci. 2016 - Um gosto de mulher (Poesia). S. Paulo: Scortecci. 2018 (2ª edição) - Dias assombrados em Roma (Memórias). S. Paulo: Scortecci. 2ª ed. 2020 - Contos covidianos. S. Paulo: Scortecci. 1ª e 2ª eds. 2021); Os dois melros (Conto). Rev. de Portugal nº 18/2021; Eça de Queirós e Graciliano Ramos: Diálogo criativo (Palestra: Vila Nova de Gaia - 15.03.2022). Rev. de Portugal nº 19/2022.

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