ALGUNS FUNERAIS PITORESCOS
   22 de maio de 2023   │     11:08  │  0

ALGUNS FUNERAIS PITORESCOS

Ao longo dos meus primeiros 23 anos de vida, todos eles passados na França, estive presente somente num único enterro: o da minha avó materna, chamada Louise. Dona de uma forte personalidade, ela nunca fora de fazer as coisas pela metade. Portanto, na hora de escolher um meio para sair de cena, optou por algo radical, que não dava margem ao erro: passou dessa para a melhor, pulando debaixo de um trem!


Bastante deteriorado, o corpo só fora visto pelo meu tio-avô, Emile, que, avisado por vizinhos, correu até os trilhos antes que os restos mortais fossem recolhidos e levados pelo rabecão. Em razão disso, o caixão permaneceu lacrado durante todo o funeral.
Recordo perfeitamente das discretas exéquias celebradas numa igreja sombria, cuja edificação datava de 1769. O clima geral foi repleto de uma cerimoniosa austeridade. Em torno do sóbrio esquife, havia coroas de crisântemos, a flor do pesar usada na França, principalmente durante as comemorações do Dia de Finados.
Por ser eu púbere, minha mãe inventou de me vestir com roupas brancas. Em compensação, todos os parentes e amigos próximos trajavam o luto fechado, dos pés à cabeça. Umas mantilhas negras cobriam os cabelos das mulheres, e os homens, quando não vestiam um terno preto, usavam uma braçadeira dessa mesma cor.
Logo após o corpo descer à cova, tive de entrar numa fila unicamente formada pelos membros da nossa família. Oriundos de uma respeitada ascendência, ficamos alinhados, ombro contra ombro, durante um tempo interminável. Recebemos os apertos de mãos de todos os mais notáveis figurões do pequeno município e, depois deles, boa parte dos habitantes veio expressar condolências.
Nove anos mais tarde, já instalada em Maceió, contemplei funerais de atores, cantores e políticos, através de revistas, filmes e dos noticiários. Conforme as peculiaridades do meu novo país, festivo e carnavalesco, descobri certos mortórios muito mais burlescos, pois eram condizentes com o jeito informal e extrovertido de ser do povo brasileiro.
Nesses abafados velórios tropicais, notei algumas viúvas de calça jeans e suas filhas de minissaias, assim como olhei caixões transformados em jardineiras. Nas missas de sétimo dia, reparei as parentas decotadas, abanando-se com o santinho. Em funeral de torcedor, observei a vistosa bandeira do time, ocultando o tétrico féretro e encontrei até defuntos vestindo a camisa auriverde da seleção. Vi até uma moça despejando o conteúdo inteiro de um frasco de perfume sobre o morto, na intenção de deixá-lo bem perfumado!
Desde minha chegada, passei a frequentar muitos sepultamentos de parentes, amigos e conhecidos. Vez ou outra, desenrolavam-se cenas absurdamente surreais, como aquela acontecida durante a vigília mortuária de um senhor, sucumbido após longa agonia. Nesse dia, testemunhei o estranho comportamento de uma amiga da família, conhecida por seu jeito autoritário de impor seus atos.
Sem pedir autorização à viúva, a mandona aproximou-se do ataúde e, a seguir, levantou uma das pernas do cadáver, reta que nem canela de manequim de vitrina. A mulher tinha a intenção de retirar-lhe o calçado! Depois de arrancar o primeiro sapato, ela puxou o segundo, deixando os dois caírem, ruidosamente, no chão da capela. Para justificar a ação invulgar, a
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mulher deu a entender que, devido ao tamanho avantajado dos pés, não seria possível fechar o esquife!
Atônita diante de tão inusitada atitude, olhei em torno de mim. Aparentemente, ninguém parecia ter reparado. Ou talvez ninguém se importasse, como se aquele procedimento fosse a coisa mais natural do mundo. Sabendo que o pé está geralmente associado ao erotismo, dada sua simbologia fálica, nem quis imaginar qual obscura ou inconfessável motivação escondia-se atrás daquele gesto tresloucado.
Assisti a outro episódio mirabolante, ocorrido, dessa vez, durante a missa de corpo presente de uma jovem, que veio a óbito após sofrer uma longa enfermidade. Extremamente dramático, o padre, que rogava a Deus pela alma da morta, possuía uma pregação empolada.
A ladainha do sacerdote parecia uma montanha-russa vocal, dado que ele modulava o tom da voz, fazendo-a subir e descer a cada duas ou três palavras pronunciadas. Afamado bajulador, fez apologia à ilustre linhagem e lembrou o quanto era próximo dos parentes da finada.
A seguir, eternizando ainda mais a lenga-lenga, contou peripécias realizadas durante as festanças dadas pela família, para as quais era sempre convidado. Altamente teatral, fragmentava sua fala amaneirada, entrecortando as frases com repetidas pausas. Finalmente, apontando o féretro aberto, declamou com toda pompa shakespeariana:
— Vejam quais são… os desígnios de Deus… observem essa moça… aqui deitada… sucumbida na flor da idade… pois essa jovem… foi chamada para sentar-se… junto ao Nosso Senhor… enquanto sua bisavó… “surda” e com 93 anos… continua aqui entre nós!
Abismada, quase não acreditei quando ouvi o pároco fazer referência à mouquidão da idosa. Notei que, ao articular a palavra “surda”, ele aumentara o vozeirão e forçara na pronúncia, enfatizando, desse modo, a deficiência auditiva da velha senhora. Pensei que, por não ser brasileira, talvez eu tivesse interpretado mal o trecho do sermão, só que, vinda do fundo da igreja, a voz trêmula da anciã corrigiu:
— 93 não! 92!
A sucinta resposta provava que, além de não ser tão mouca assim, a bisavó possuía uma vaidade feminina que, colocada a toda prova, se sobrepunha à dor de velar a própria bisneta.
Revelo agora outra anedota que, dessa vez, tem uma tia distante como personagem central. A piedosa mulher era a mais perfeita anfitriã das capelas mortuárias, onde eram pranteados nossos mortos. Gerenciava os velórios como se fosse uma competente produtora de eventos lutuosos.
Extremamente solícita, sempre fazia as honras da casa. Levava biscoitos, broas e jarras de suco, logo acondicionados numa salinha, situada ao lado da câmara ardente. Metódica, arrumava tudo direitinho e trazia até panos bordados para enfeitar as reluzentes bandejas de inox, sobre as quais depositava copos e xícaras.
Oferecia café ou água de coco e perguntava se o bolo era macio ou se queríamos mais um bocadinho. Entre dois soluços, as viúvas podiam beliscar umas bolachas mimosas ou bebericar um chá de camomila. Prestativa, a tia estendia lencinhos de papel para assoar os narizes e disponibilizava até comprimidos de tarja preta, em caso de eventual chilique.
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Num dos funerais por ela administrados, eu pude testemunhar um episódio totalmente esdrúxulo. Os parentes do falecido eram amigos dos donos de uma pizzaria. Solidários com a dor da família enlutada, o pessoal achou por bem enviar algumas pizzas para o cemitério.
Mal pude crer quando vi seis motoboys entrarem, um atrás do outro, no caminho que atravessava os túmulos. Estarrecida, observei o insólito desfile se aproximando lentamente. Cada motociclista vestia uma indumentária chamativa e um capacete vermelho. As cores berrantes dos seus macacões contrastavam com os ânimos aflitos dos presentes e o céu grisalho, prestes a chover.
Quando as caixas com seus vistosos logotipos chegaram à capela, a tia as recebeu com ostensivo contentamento, pois as comidas italianas iam, com toda certeza, incrementar o lúgubre banquete. Após fracionar a massa com a ajuda de um disco apropriado, a tia depositou vários pedaços numa bandeja redonda. Depois disso, circulou entre os parentes desconsolados e, toda chorona, ofereceu as fatias, da maneira seguinte:
— Você prefere pizza com tomate e calabresa ou com queijo e “presunto”?
De toda minha vida, nunca presenciei algo mais dantesco! Pizza em velório! Aquilo parecia o sepultamento de algum mafioso siciliano! Só faltou ouvir uma banda tocando o tema do filme O Poderoso Chefão! E, francamente! Oferecer algo contendo presunto… bem ao lado de um defunto! Sem comentário…
Já que relatei certos episódios tragicômicos, chegou a hora de revelar alguns velórios dramáticos. Primeiro, narrarei um fato sucedido num povoado do interior, trinta anos atrás. Certo dia, após tomar café e pegar o jornal, logo descobri uma manchete extremamente aterradora. O título da matéria, era para lá de eloquente: Mata Sete!
O artigo revelava o crime perpetrado por um certo João da Silva, cuja filha fora desonrada por um tal de Zezinho dos Santos. O pai da moça, sujeito invocado, pegara um três-oitão, alguns cartuchos e fora logo bater na chácara onde vivia a família do deflorador. Queria obrigar o safado a casar com a ultrajada herdeira. Acontece que, ao chegar no lar do safado, João descobriu que o mancebo havia fugido da raia! Nisso, pegou a arma e meteu bala em tudo que se mexia.
O que mais me impressionou foi a foto estampada no jornal. Cada membro da família encontrava-se dentro de um esquife de madeira rudimentar. Posicionados quase em pé e sem tampas, os ataúdes estavam arrumados lado a lado e por ordem de tamanho: primeiro, o pai do Zezinho; a seguir, a mãe; depois, a irmã mais velha; logo, três outras crianças menores; e, por fim, um neném de colo. Aquilo lembrava o famoso retrato da família Von Trapp (do filme A Noviça Rebelde), só que numa funesta versão sertaneja!
Agora, irei falar do sepultamento de outra pessoa, que morrera de “morte matada”, e não de “morte morrida”. Era primo de algum amigo nosso, portanto não era alguém muito próximo a mim. Eu só conhecia o finado de vista, mesmo assim marquei presença no enterro.
O óbito adveio durante uma briga de bar que havia degenerado. Embriagado, o sujeito inventou de dizer para o comparsa de bebedeira que a esposa deste enfeitava-lhe a testa. O homem desonrado, cabra da peste, quebrou no ato uma garrafa de cerveja e cravou um caco na jugular do injuriador.
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Como observo tudo atentamente, eu havia reparado o sangue coagulado debaixo das unhas do morto. Imaginei que, antes de falecer, ele pudesse ter segurado a própria garganta, na tentativa de estancar o sangramento. Eu notara também uma gotícula vermelha, maculando a gola branca da camisa. Aquilo me havia impressionado para além da conta.
Mais tarde, já em casa, tomei um banho morno após o jantar e engoli um calmante. Não adiantou de nada, pois minha mente não parava de reiterar as imagens do homem deitado no esquife. O defunto era jovem, não tinha mais do que 40 anos. Formoso em vida, continuou bonito, mesmo após ter sido trucidado.
Quando algo me perturba, gosto de estruturar meu tempo e de planejar tarefas. Desse modo, focalizo o pensamento no amanhã. Como resultado, esqueço, momentaneamente, a angústia do presente. Portanto, logo peguei e abri minha agenda a fim de organizar a semana, que começaria no dia seguinte.
Na época dos fatos, eu seguia um tratamento que me fazia comparecer a cinco consultas semanais. Como eu nunca faltava, os horários combinados eram a primeira coisa que eu anotava nos espaços reservados. Só depois eu registrava as compras, os reparos e outros afazeres domésticos. Sendo assim, apanhei uma caneta hidrográfica e escrevi, cinco vezes, o nome do médico, que começava por um “S”. Cuidei de traçar as letras de um jeito aplicado. Depois disso, marquei, no campo certo, as outras incumbências para resolver. Terminando a tarefa, fechei o caderno e fui me deitar para dormir.
No dia seguinte, após acordar e preparar o café da manhã, peguei novamente a agenda. De imediato, descobri algo completamente insano, inscrito nas páginas abertas. Reparei o ato falho, o lapso freudiano, causado pelo meu subconsciente atordoado. Sem perceber, dado que minha psique estava completamente absorta pela mórbida experiência da véspera, eu escrevera, no lugar do nome do médico, as seguintes palavras: Sangue, Sangue, Sangue, Sangue, Sangue!

About Chantal Jeanne Lafaye Frazão

Nossa autora, Chantal Jeanne Lafaye Frazão, nasceu nos arredores de Paris, em pleno baby-boom do pós-guerra. Foi viver na capital quando tinha apenas 21 anos. Pouco depois de se mudar, a jovem cruzou o caminho de um brasileiro chamado Antônio. Assim que colocou os olhos nele, ela soube que o destino havia enfim chegado à sua porta! Em pouco tempo se apaixonaram, casaram-se e foram viver em Maceió, no ano de 1979. Chantal virou rapidamente uma alagoana, aprendeu a preparar uns quitutes nordestinos como carne de sol, feijão tropeiro ou cozido com pirão. Lançou o livro Memórias de Uma Franco-Alagoana em 2019 — obra que, nesse mesmo ano, recebeu o Prêmio Notáveis da Cultura Alagoana, na sua 16ª edição. Mais recentemente, no dia 27 de abril de 2023, Chantal entrou na ilustre Academia Alagoana de Letras, ocupando agora a cadeira 33, anteriormente ocupada pela escritora e poetisa Lyzette Lyra. Acompanhando o esposo alagoano nas suas viagens de negócios, Chantal aproveitou a vida e aprontou em NYC, Londres e outros lugares onde sua curiosidade a fez vivenciar inúmeras aventuras, que soube transfigurar em histórias, através das quais o narrador pega o leitor pela mão e o leva para passear em variegas perambulações pelo mundo afora...

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