OS SETE TROVÕES
   7 de junho de 2023   │     5:56  │  0

E clamou com grande voz, como quando brama o leão; e havendo clamado, os sete trovões fizeram soar as suas vozes.
Apocalipse de João, Capítulo 10:3

NAQUELE TEMPO, ESTANDO FREI ANDRÉ MARIE ajoelhado ao pé da Mesa do Santo Ofício, em Lisboa, foi logo dizendo, com todas as letras, que lá chegava de livre e espontânea vontade. Vinha para confessar os seus pecados contra a santa madre igreja. Talvez por acreditar que tamanha franqueza amornaria o ímpeto de julgadores tão frenéticos e ciosos do sublime dever de manter e difundir a primazia da fé cristã.


Até se surpreendeu com o próprio atrevimento. Mas não deixou que o seu desassombro fosse calcinado pelos olhares chamejantes dos três inquisidores. Já sabia, desde antes, que eles vasculhariam a sua consciência. E que se valeriam de tudo o que fosse de ardil para convertê-lo em delator de si mesmo.
Respirou fundo e desembuchou: que andava a duvidar da existência do purgatório como antessala do paraíso; a suspeitar de, que seriam inúteis as indulgências vendidas pela Santa Sé; a desconfiar da serventia e do sigilo da confissão. Como se já não bastasse, ainda contestava que o papa tivesse governo para decretar, por conta própria, quem deveria fazer parte do círculo mais íntimo da corte celestial. E, por isso mesmo, ter sua imagem nos altares e ser incensado pela devoção injetada nas almas crédulas. Não encontrava argumentos para explicar como um mortal podia atropelar os direitos do criador de perdoar de graça os pecadores e escolher membros do seu séquito divino.
Frei André Marie não somava mais de vinte e cinco anos. Tinha um rosto oval, de certa beleza realçada pela fronte plana, pelos olhos encapuzados e tingidos com um verde desmaiado, pelo nariz romano harmonizado com lábios sucintos e carnudos e pelo queixo quadrado de desenho viril. Quase imberbe, exibia uma tonsura lustrosa, encurralada por uma cercadura de cabelos alourados. Vestia um hábito surrado de um marrom desfalecido. As mangas folgadas omitiam as suas mãos congregadas pelos dedos entrelaçados. Estavam repousadas à altura do umbigo, como se a escudarem o ventre encovado.
Até os inquisidores estranharam que tivesse chegado sem ter sido chamado. Não havia quem não tremesse ao somente ter notícia de que poderia vir a ser intimado à presença de tribunal tão austero. Quanto mais sê-lo. Muito mais ainda ver-se interrogado por aqueles prelados carrancudos. Todos sabiam que, ao lá se chegar, somente num delírio se poderia fantasiar uma absolvição. Muitos, com acerto ou desacerto, até diziam que eram fanáticos aqueles magistrados. E os fanáticos, ainda que sejam os que mais se proclamam paladinos da fé, da lei e da justiça, detestam a presunção da inocência e repudiam a liberdade de quem ousa crer ou descrer, pensar e escolher, fora da cartilha por eles tida como sacrossanta.
E não era para menos. Os inquisidores eram visitadores escolhidos a dedo e nomeados pelo papa, astuciosamente atirando, no colo do sempiterno, a responsabilidade pela indicação. Tinham a piedosa e sublime missão de fazer com que valessem os preceitos sacramentados nas tábuas editadas pela doutrina da Igreja Católica, Apostólica Romana. Mandamentos que se resumiam, segundo concluía André Marie, ao contido acervo de dogmas promulgados pela excelsa infalibilidade do Sumo Pontífice.
Não chegou a dizer. Mas, ao seu ver, seria por isso mesmo que o Santo Ofício arvorava-se com poder para esganar, em crentes e descrentes, os dons da reflexão, do livre arbítrio e da manifestação falada e escrita. A tal história de que os fins justificam os meios.
Enfim, um pretório que não respondia senão ao Altíssimo em pessoa. Não devia reverência a condestáveis, grão-duques, príncipes, reis e imperadores, cujos poderes se esvaiam diante da supremacia das decisões lavradas pelo Inquisidor-Mor do Reino. Seus julgamentos já traziam o timbre da verdade absoluta. Contrariá-los era tão abominável quanto blasfemar.
Ao Santo Ofício era dado o poder absoluto de vida e de morte sobre fiéis e infiéis. Quanto à execução das penas capitais, contudo, se resguardava como ghost executioner. O que fazia todo sentido. A caridade e a misericórdia cristãs não se concertam com o atear fogueiras para incineração, em vida, dos ditos hereges impenitentes. Nem com a prática do benevolente garrote vil nos arrependidos, antes dos seus corpos serem lançados no fogaréu.
Convivem muito bem, contudo, com torturas e vexações públicas, desde que impostas em defesa da fé. Mesmo que alguns fariseus as enxergassem insultuosas e infamantes. Ademais, o Santo Ofício não garroteava ninguém e muito menos torrava nas fogueiras. Ficava com o processo e a pura e simples condenação. A execução das penas capitais era tarefa das cabeças coroadas. E não há quem negue que há uma distância sideral entre ordenar que se o faça e fazê-lo.
Se a Inquisição supliciava os seus investigados, não era para arrancar-lhes, pelo tormento, a confissão de atos que talvez nem tivessem praticado mas que justificariam a condenação já desde antes decidida… era para convencer os ímpios a revelarem as suas reais iniquidades por pensamentos, palavras e obras; se os apenava com o vexame do sambenito e da coroça, não era para humilhá-los e muito menos infamá-los… eram penalidades de índole exemplar, provações que levavam a finalidade meritória de convencer os ímpios a se reconciliarem com a divindade e advertir todos os demais do quão demoníacas eram as transgressões aos artigos de fé; se condenava ao flagelo da incineração em vida dos hereges, bruxos, profanadores e rebeldes contra a tirania dos sexos… era somente para lhes purificar as almas pelo fogo e assim livrá-los da fornalha do inferno. Tudo, portanto, conciliado com os mais nobres propósitos.
Para André Marie, porém, era o fanatismo que estava na raiz do que tinha por retórica tão inflamada quanto impostora. Escreveu em uma das cartas que destinou a um franciscano com quem convivera no seminário: O fanático é sempre um mago que a si mesmo enfeitiça. E são tantas as miragens que inventa para se convencer de que há verdade naquilo em que quer acreditar, que não demora muito para ter inteira certeza de que são reais as fantasias que constrói.
Acontece que André Marie vinha de uma moléstia que por pouco não o remeteu à desencarnação. Foram trinta dias de enclausuramento e reflexões. Não se poderia dizer que desse transe vieram a reanimação da sua fé e o avivamento do temor da condenação a uma eternidade como hóspede na abrasiva estalagem de Satanás. Pelo sim pelo não, contudo, mais prudente não correr o risco de, ao chegar do outro lado, ser tomado de surpresa e não ter mais jeito de remediar. Uma vez morto a conta a pagar já estaria consolidada e não haveria retorno. Era purgar a mora e pronto. O mais cruel é que teria de padecer, pela eternidade, por atos cometidos em instantes pontuais de uma vida tão efêmera.
A única saída que ainda enxergava era confessar o que seriam as suas culpas, ao menos aos olhos da igreja. Daria a parecer que descarregava a sua consciência e estava a expiar os seus pecados. Embora tivesse a opinião de que a fé não suporta cogitações ancoradas na razão. Refletir racionalmente sobre a fé concorre muito mais para dissipá-la do que para fortificá-la, concluiu, certa vez, em uma das suas desalinhadas homilias.
O fato é que a sua confissão seria o primeiro passo para ensaiar um regresso ao rebanho dos justos. Se findasse condenado à morte pelo garrote vil ou pela fervura na fogueira da redenção, que fosse bem-vindo o martírio. Não temia a morte. O que o aterrorizava era a execração pública, caso obrigado a trajar a veste da abominação e cobrir a cabeça com o cone infamante.

Antes de ir à Casa de Despacho da Santa Inquisição, que ficava no Largo do Rossio, André Marie confessou-se na Igreja de São Roque e ainda orou, por cerca de uma hora e meia, na Igreja de São Domingos. Não para rogar por um reforço à coragem que haveria de ter. Essa ele tinha, apesar de que aqui e ali começasse a dar ares de declínio. Do que precisava, isso sim, era de firmeza no discernimento, para que usasse as palavras certas, sem que incorresse em titubeios e contradições.
Talvez por isso não desmoronou quando os familiares do Santo Ofício (como eram chamados os esbirros da Inquisição) o levaram, aos safanões, por um demorado e lúgubre corredor, até ser empurrado porta adentro de uma sala desalumiada. Lá estavam os clérigos que o interrogariam. A sentença viria do Inquisidor-mor do Reino. Foi também a muque que o fizeram dobrar os joelhos e permanecer genuflexo durante a audiência inteira.
O interrogatório abarcou perguntas que sempre geraram sutis reperguntas. Ele intuiu que tamanha insistência tinha o fim de irritá-lo e afinal desconcertá-lo. Não se deixou levar. Carecia de convencer da sinceridade do seu arrependimento. Acreditou consegui-lo. E tinha mais do que razão para isso. A prova foi que depois de duas outras audiências, o veredicto, proclamado meses mais tarde, não lhe cometeu o suplício do estrangulamento ou o martírio de ser consumido pelas labaredas. Nem mesmo o vexame de trajar o sambenito e ostentar a coroça,
Para surpresa geral, apenas lhe sobraram, além de penitências devotas e do pagamento das custas do processo, o confisco de todos os seus bens, o que somava quase nada.

Veio o Dia de Todos os Santos do ano da graça de mil setecentos e cinquenta e cinco. Havia cerca de oito meses desde que André Marie tinha sido sentenciado pelo Santo Ofício. Passava das nove horas e ele estava ajoelhado em um dos confessionários da Igreja de São Domingos. Era sábado. Dava obediência, ao pé da letra, a uma das penitências espirituais que lhe foram impostas.
Uma multidão lotava a nave do templo. Os lisboetas, como se dava a cada primeiro dia de novembro, desde muito cedo já tinham dado começos à maratona de visitação às capelas e igrejas da Baixa. Cada um dos templos, como sempre, mais enfeitado do que o outro. Uma reincidência anual que parecia destinar-se à eternidade. Não adiantava questionar quanto ao préstimo daquilo tudo. Era de tradição que se tratava. E as tradições associam crenças de que são úteis, indispensáveis e perenes. Mesmo quando calçadas no sectarismo predicado pelo arrebatamento da fé ou pela ebriedade de doutrinas mundanas.
Os fiéis arrancavam do Rossio e percorriam, sozinhos, aos pares ou em bandos, as ruas estreitas e tortuosas. Cumpriam roteiro assentado desde dias remotos, que receitava paradas obrigatórias em igrejas secularmente alistadas: São Julião, Conceição, São Nicolau, Santa Justa, São Mateus. Era, afinal, o dia consagrado às bajulatórias a cada um dos parceiros na legião dos bem-aventurados.
Que ninguém caísse na asnice de ceder à tentação de distingui-los em razão do sexo, da raça, da cor ou do campo de proteção em que o bendito era traquejado. E se dizia de bom conselho não desagradar um único dentre eles. Era quando pouco temerário. Poderia se dar que qualquer um daqueles eleitos, embora ungido pela santidade, não se tivesse libertado, de um todo, da ferrugem da vaidade e do limo da inveja. Ranços de que os humanos não conseguem se despregar. Ou até queiram mas sequer tentem.
Nem é preciso dizer que as naves dos santuários, de uma hora para a outra, estavam lotadas de fiéis a se acotovelarem, engolfados pela luz tremulante das velas empoleiradas nos lampadários, candelabros, castiçais e, por vezes, também archotes. Cada devoto mais aflito para se fazer visto pelos olhos de vidro do santo entronizado no nicho que lhe tinha sido assegurado pela liberalidade da canonização. Cada um, de cima da sua peanha, atarefado com a inquirição dos anjos guardiães dos que lhe professavam devoção cativa. Os devotos podem ser dissimulados; os anjos não mentem.
Também a família real celebrava a fieira sem fim de bem-aventurados. Ao seu modo, claro: longe das ruas e deleitada pelas regalias do Palácio de Belém. Longe do povo, portanto, tal qual os oligarcas aninhados nas nomenclaturas das repúblicas fingidas de hoje. Louvariam as potestades do paraíso, sim. Mas numa missa cantada, na companhia de uma vasta coleção de ministros, embaixadores, magistrados e homens do clero.

Um estampido apocalíptico ensurdeceu o mundo. O chão se esperneou, como que assanhado por um surto convulsivo. André Marie ficou petrificado. Pelo que muito mais tarde sustentou, foram ouvidos sete trovões, entremeados por curtas e enganosas calmarias. Não tinha ânimo, nem mesmo, para girar a cabeça e encarar a multidão em polvorosa.
Eram crianças aos berros, velhos a amaldiçoarem as debilidades, cegos e aleijados a clamarem por socorro, pais e mães a gritarem pelos filhos extraviados no meio da turba alucinada. Um dominicano centenário, com a face afogueada, os olhos esbugalhados, os braços hasteados e as mãos espalmadas em rigidez tetânica, esbravejava desde o cimo do púlpito, a certificar a chegada do dia do juízo final.
Lá, como em tantas outras igrejas, as paredes bamboleavam e logo foram percorridas por rasgões enormes. Vãos que traziam para os acuados os rastros do sol que ainda conseguiam vencer a poeira que sufocava a cidade. As armações dos tetos perdiam os arrimos e as vigas e telhas começaram a despenhar. Os lampadários pendulavam desorientados. Os candelabros, os castiçais e os archotes tombavam com alarde. As chamas das velas ateavam fogo no que encontravam pela frente: tapetes, genuflexórios, bancos, altares, nichos e toalhas brancas, adornadas com rendas e franjas, que vestiam as mesas dos altares.
Há quem diga que foi a igreja de São Domingos a primeira a pegar fogo. Outros discordam. Que diferença faz? Não há glória em ser o abre-alas nem desdouro em ser o derradeiro num cordão de desafortunados.

Nos bordéis da Rua Formosa, ali na redondeza do Palácio dos Carvalhos, onde morava o secretário do reino que viraria Conde de Oeiras e Marquês de Pombal, poucas eram as putas que já estavam de pé. Era ainda muito cedo para quem tinha varado a madrugada a desatar orgasmos alheios em troca do sustento. Também elas, estonteadas, perdiam o equilíbrio e algumas até se estatelaram no solo buliçoso. As que continuavam a madornar sob os lençóis encardidos, ainda impregnados pelos suores malcheirosos da multidão de homens que ofegaram em suas camas, despertaram sobressaltadas e relutaram. Mais seguro não se pusessem de pé.
Era na Baixa que se alastrava a devastação: quadros e crucifixos desprendiam-se das paredes e iam se espatifar no meio dos aposentos; palácios, palacetes, casas e mansardas ruíam e ardiam, ao empuxo da submissão à mesma sina. Os estatutos pareciam desmoronados e todos finalmente se irmanavam pelo caos: abastados, remediados e indigentes, nobres, clérigos e plebeus, mulheres, homens e libertos da tirania dos sexos, putas e damas virtuosas, virgens e adúlteras, fidalgos e ignorados, ateus e devotos, católicos e não católicos, cristãos-novos e judeus.

Consumado o arrasamento pela terra tremente e pelo furor do fogo, veio a impetuosidade das águas. Elas se retraíram de uma hora para a outra, como se a temerem a inclemência dos abalos e a voracidade do fogaréu. Mas foi mero fingimento. Logo regressaram endiabradas. E trouxeram uma onda gigante, capaz de lamber os cimos das cinco colinas de Lisboa. Houve quem desse testemunho de que, medido desde o raso à crista, o vagalhão chegou a mais de vinte pés de vulto.
E veio e teimou em vir novamente. E a cada vez que se recolheu arrastou com ela navios e batéis, árvores franzinas e robustas, prédios inteiros e monumentos, moços e velhos, adultos e crianças. E o que mais podia arrebatar, dado o ímpeto inspirado por uma ira indomável. Não se teve nem se tem como somar quantas vidas impunemente tragaram.
Depois, quando havia quem acreditasse que a catástrofe já se cansara de destruir e matar, eis que os incêndios começaram e se alastrar. Teriam montado a encosta e chegado às vizinhanças da Sé, enquanto se empenhavam em incinerar o Alfama.
Muitos desventurados, surpreendidos pelas chamas enquanto confinados nos destroços e sem horizonte para escape, foram torrefeitos pelas labaredas. Outros, cá de fora e inválidos para resgatá-los, ainda que avós, pais, mães, maridos, mulheres, filhos, filhas, aparentados e amigos… naufragavam no desconsolo. Somente lhes restava sentar, maldizer as venetas da natureza, prantear e orar.
André Marie alistou-se na falange dos desesperados. Embora mancando, com o rosto varrido por machucões e feridas, o antebraço direito partido a dois palmos desde o cotovelo. Estava banhado pelo sangue que esborrava de um lanho que, beirando as sobrancelhas, se encompridava desde uma borda à outra da fronte.
Ainda chegou a se ajoelhar ao pé do dominicano centenário que agonizava. Uma haste, feito uma lança romana, desprendera-se não se sabe de onde e o havia varado. Invadira-lhe o ventre, à altura da boca do estômago, indo acontecer na ilharga esquerda. Não havia mais nada a fazer. André Marie encomendou de arranjo a sua alma. Pelo seu gosto teria ministrado a extrema-unção. Mas lhe faltava o óleo santo para dar esse consolo ao moribundo.
Antes de encher e esvaziar o peito pela derradeira vez, o ancião esticou a vista extenuada para o jovem frade e sussurrou: Vigieis e oreis, meu filho. Quando menos esperardes as garras do Santo Ofício vão vos alcançar. Não deveis confiar em ninguém. Nem mesmo no seu confessor.
André Marie arrepiou-se, mas não permitiu fosse intimidado pelos entulhos e pelo fogo. Cerrou os olhos do defunto, acomodou-lhe as mãos em prece sobre a inerte caixa dos peitos. Ergueu-se em seguida e partiu a se equilibrar sobre os escombros e a fazer pouco das chamas que a tudo lambiam. Com uma resistência para ele improvável foi a catar os infelizes que gemiam soterrados e que ainda se buliam. Chegou a desencovar com vida três crianças de colo, uma mulher grávida de uns oito meses, dois aleijados e um cego. Não fez mais porque desfaleceu. Quando reouve o tino estava estirado no meio da rua. Algum bom samaritano o havia resgatado.

Quando a manhã seguinte acordou, mal dava para ver o quase nada que restara da cidade baixa. Uma nuvem quase sólida de fumaça e poeira escondia o sítio devastado e encurtava a visão de quem se atrevia tentar esquadrinhá-lo. De onde quem quer que estivesse não enxergava mais de alguns palmos adiante do nariz.
André Marie não pregara os olhos a noite inteira. Era mais um entre os tantos cirineus que faziam o impossível para aplacar o sofrimento dos feridos, alentar os que estavam a morrer e empilhar os cadáveres. A batina, antes surrada, convertera-se em molambos. A tonsura, sempre tão reluzente, estava camuflada por uma lama terrosa, que denunciava uma mistura grudenta de barro, suor e sangue.
Foi quando alguém rumorou ao seu ouvido que o Palácio do Conde de Perlada, Embaixador da Espanha, tinha ido abaixo. Mas não antes que o nobre fosse abatido pelo brasão da família. A peça enorme e corpulenta havia despencado da parede e encontrado a cabeça do notável no meio do caminho.
Soube, também, que o Palácio dos Carvalhos e os bordéis da Rua Formosa permaneciam de pé e com módicos estragos. O que mastigou o juízo dos políticos desafetos do secretário de estado e maltratou os pruridos virtuosos das beatas.
Os políticos, estraçalhados pelo desgosto de saber que nem o terremoto, o maremoto e o incêndio deram fim ao antagonista presunçoso e sagaz. E era tão bafejado pela sorte, que o seu Palácio dos Carvalho ficara quase ileso.
André Marie não via nessa irresignação nada de fora do lugar. Era indecorosa, sim. Mas era de opinião que vindo de onde vinha era tão natural quanto a reincidência das quatro estações. Repetia que esperar escrúpulo de político é tão estúpido quanto acreditar que o escorpião tem piedade dos desditosos que ferroa.
Já as beatas estavam perplexas. Não entendiam por qual propósito Deus permitira que tantas igrejas fossem devastadas e, em cada uma, centenas de fiéis fossem esmagados, enquanto as moradas das putas sofreram poucos danos e elas sobreviveram. Não fazia sentido.

No sábado seguinte André Maria foi ao confessionário na Igreja de São Roque. O templo quase não expunha chagas abertas pelo sismo. Foi minudente no relato dos seus tropeços. Como haveria de ser, não distinguia os traços do jesuíta encafuado do outro lado das frestas do confessionário. Somente escutava a sua respiração ofegante e, de quando em vez, uma voz empostada a cobrar pormenores dos fatos narrados pelo penitente.
André Marie sentiu-se intimidado. Ali chegara em busca de um confessor. Começava a suspeitar de que encontrara um delator. E teve certeza quando o jesuíta adiou a absolvição e a prescrição da penitência Preferiu fazer-lhe um sermão que lhe chegou com bafio de ameaça latente.
O prelado o advertiu de que os desígnios do Senhor são insondáveis; que questioná-los é um ato de sacrílega rebeldia; que ele, como sacerdote, tinha o dever de dar o exemplo às suas ovelhas, professando o testemunho de obediência irrestrita às verdades canônicas; que, por muito menos, não poucos haviam expiado semelhantes abominações na fogueira redentora.
André Marie não esperou mais. Recordou o que lhe dissera o dominicano de quem ouvira o derradeiro suspiro e foi despertado por um mais do que pressentimento que fez as suas entranhas trepidarem. Ergueu-se de supetão e saiu às pressas. Tomou o rumo da porta da igreja. De caso pensado, nem fez a genuflexão nem encenou um apressado sinal da cruz. O que a liturgia recomendava que fizesse, com os olhos postos no altar-mor.
Um ar de riso amarelo lhe percorria os lábios sucintos e carnudos. A fronte plana franzira-se. Seguiu ladeira abaixo, sem que ao menos uma vez olhasse para trás. Uma aragem glacial lhe agrediu o nariz romano e o queixo quadrado de desenho viril. Embutiu a cabeça no capuz, enterrou as mãos nas mangas do hábito e repudiou o calafrio que, de cima a baixo, lhe caminhou pelo corpo. Mas logo compreendeu que não era o frio que o molestava… era um mau pressentimento que o castigava.
Mais uma vez foi assediado pelo descrédito na serventia e no sigilo da confissão. Antes não tivesse confiado naquele jesuíta. Seria melhor ir logo preparando o espírito. Estava convencido de que mais dia menos dia seria intimado pelo Santo Ofício.

Lisboa, maio de 2023

About Carlos Mero

CARLOS MÉRO nasceu em Penedo (1949). Membro da Academia Alagoana de Letras, do IHGAL e da Confraria Queirosiana (PORT.). Já integrou o Comité Scientifique da Revue REFLEXOS - Université Toulouse Jean Jaurès – FR.). Principais publicações: O Beco das Sete Facadas e outras estórias alucinadas (Contos). São Paulo: Marco Zero. 2005 - A lua de fel do casal Valhamor (Conto). Revue L’Ordinaire Latino-Americain, nº 212/2010, Université de Toulouse II – Le Mirail. - O amargo regresso da desesperança. Revue Caravelle nº 96/2011 - Université de Toulouse II – Le Mirail - Travessias (Contos - coautora: Cristina Duarte-Simões). Maceió: Viva. 2013 - Graciliano Ramos: Um monde de peines. (Depoimento). Lille (Fr): The BookEdition. 2015 - A deserção de Maíra (Novela), in Inventando Maíra S. Paulo: Scortecci. 2016 - O chocalho da cascavel (Contos). S. Paulo: Scortecci. 2016 - Um gosto de mulher (Poesia). S. Paulo: Scortecci. 2018 (2ª edição) - Dias assombrados em Roma (Memórias). S. Paulo: Scortecci. 2ª ed. 2020 - Contos covidianos. S. Paulo: Scortecci. 1ª e 2ª eds. 2021); Os dois melros (Conto). Rev. de Portugal nº 18/2021; Eça de Queirós e Graciliano Ramos: Diálogo criativo (Palestra: Vila Nova de Gaia - 15.03.2022). Rev. de Portugal nº 19/2022.

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