Os eternos problemas de uma universidade privada
   5 de maio de 2023   │     3:34  │  0

Uma universidade privada é uma empresa capitalista; e, como acontece nesses casos, padece de falta total de autonomia para dar conta, destemida, das suas finalidades, porque quem manda nela é o mercado… e a política.


Preparando-se para organizar seu vestibular, a Universidade de Rio Verde (UniRV), em Goiás, tinha selecionado, para figurar na sua prova de expressão portuguesa e literatura, o romance _”Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios_”, obra de Marçal Aquino que já virou filme com Camila Pitanga e foi traduzido em vários países. Como se vê, o livro tem mercado. Mas não tem política. Tem leitores, mas políticos ditos conservadores – eu diria “reacionários” – resolveram interferir num assunto interno à universidade em questão. Interferir negativamente, claro, porque, se não me engano, a maioria de deputados e senadores não entende nada de arte e literatura (aí vai uma avaliação minha, pelo que meus olhos conseguem alcançar).
Pois bem. O deputado Gustavo Gayer (do PL) comprou uma briga com a universidade privada; disse os piores nomes contra o romance de Marçal Aquino, classificando o texto de “pornográfico”. Conheço o romance. Não é pornográfico. E qual é o romance que merece receber essa etiqueta?
Literatura não tem moral a prescrever-lhe as páginas, como bem disse Oscar Wilde no prefácio que fez à própria obra _”O retrato de Dorian Gray_”: uma obra é bem ou mal escrita, bem ou mal composta. Mas pornográfica… meu Deus do céu! Quanta maluquice!
Na minha adolescência ouvi gente bem mais velha chamar os romances de Jorge Amado pornográficos. Pornográfico Amado? Sei que é juízo de época. Quatro ou cinco décadas atrás havia mesmo, no meio da classe média, pessoas com esse tipo de pensamento. Hoje, século XXI, vemos que tal vem por conta do atraso civilizacional no Brasil, da educação sempre deficitária e das cabeças do tamanho de fósforo de um pessoal que ousa discutir um assunto para o qual não está preparado. Metam-se com seus alfarrábios, ora, e deixem a literatura de lado!
Resultado dessa epopeia: a excelentíssima Universidade de Rio Verde cedeu aos rogos de Sua Excelência do PL: voltou atrás e tirou _”Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios_” da prova de vestibular. Como um profeta, Marçal recebeu uma notícia ruim, provocada pela ignorância, que é sempre atrevida, não, no entanto, vinda dos lindos lábios de Gustavo Gayer, que eu não conheço (graças a Deus) e, portanto, não dá para saber se seus lábios são lindos mesmo.

Mas o mal já foi feito. Oremos!

About Roberto Sarmento Lima

Roberto Sarmento Lima é professor titular da área de Estudos Literários da Universidade Federal de Alagoas. Tem doutorado em Literatura Brasileira, com a tese O narrador ou o pai fracassado: modernidade e revisão crítica em Vidas secas (1998). Para seu concurso de professor titular, defendeu a tese Retratos do narrador cínico: confissões em lugares fechados (2020). É autor de livros e artigos publicados em várias revistas acadêmicas, tanto no Brasil como em Portugal. Em 1986, recebeu o Primeiro Prêmio do Concurso Nacional Manuel Bandeira com o ensaio Manuel Bandeira: o mito revisitado, publicado como livro no ano seguinte pela Editora Tempo Brasileiro, do Rio de Janeiro. Desde 2009, é articulista fixo da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura, da Editora Escala, de São Paulo.

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