SALOMÉ
   20 de setembro de 2023   │     8:54  │  0

Salomé de Klimt

A CABEÇA DESTRONCADA DO PROFETA jazia numa bandeja de prata. Vinha acamada em viscosa calda de sangue vivo. Os cabelos, castanhos e aparados, estavam empastados por uma graxa pegajosa e repulsiva. Os dentes travados e os lábios cerrados contavam recordação do minuto extremo e aflitivo em que aguardava a cutilada inclemente.
Angústia que era desmentida pelo ar de riso que saltava dos olhos sonolentos da cerviz decepada. Estaria neste (isso sim) a prova de que o profeta aceitara com resignação o funéreo desfecho. Até com grande júbilo ( na certa diria ). Cumprira a sua missão de anunciar a vinda de alguém mais poderoso do que ele, cujas sandálias nem seria digno de descalçar.
Vozes profanas e não confiáveis chegaram a garantir que viram os olhos do justiçado pestanejarem, mesmo quando a cabeça já havia sido apartada do corpo e rolou pelo chão imundo da masmorra. E outra vez mais quando o carrasco a ergueu pelos cabelos e, envaidecido, a exibiu a uma sorridente plateia de soldados sedentos de sangue.
João Batista já não tinha voz para clamar no deserto.

Tinha-se um banquete em que se festejava o aniversário de Herodes Antipas. Era ele, naqueles tempos, o Tetrarca da Galileia, por obra e graça do patrocínio da opressiva Roma imperial.
O anfitrião e os convidados se empanzinavam e se embriagavam. De tão bêbados, não se sentiam cativos a qualquer figurino de parcimônia e decoro. As iguarias abundavam. As taças mal meavam e já eram reenchidas até o ponto em que o vinho alcançava as beiras e se derramava no desperdício.
O esbanjamento pelos poderosos já não era novidade naqueles idos remotos. E não há relato insuspeito de uma única quadra da história de que não tenha sido contemporâneo.
E não é diferente nos dias de hoje. Se há relatos de abusos, cometidos em passado remoto ou distante, não valem para os poderosos como aprendizado para não os repetirem porque indecentes e deletérios. Tomam a lição para que refinem os seus métodos de caça ao tesouro e as estratégias que lhes possam garantir a perpetuidade no poder.
As promessas palavrosas de respeito às leis, austeridade nos gastos, garantia das liberdades e redenção dos indigentes e excluídos não resistem à euforia do instante em que eles se sentam no trono e se assenhoram da chave do cofre.
Quando a retórica mascara o real, o que sobra é o embuste.

Durante aquela festança, nada podia abafar tamanha vozearia e tantas gargalhadas. Nem as exclamações com que se aplaudiam as afoitezas dos acrobatas e os volteios das dançarinas seminuas. Eles e elas se revezavam no vazio encurralado pelas mesas arranjadas como que a formarem um anfiteatro de incomum desenho retangular, com seus ângulos internos congruentes: na cabeceira viam-se os assentos do monarca e dos que lhe eram mais próximos; nas laterais estavam as cadeiras reservadas à nobreza menos assinalada, aos endinheirados, a uns poucos sacerdotes e aos demais convidados.
Eram mulheres e homens habituados a uma vida de fartura, mordomias e pompas, asseguradas pela proximidade do poder. Seria insano, portanto, pretender que estragassem o deleite com preocupações românticas com os desvalidos e famélicos que estavam lá fora.

Herodes Antipas, assim como sua mulher, de nome Herodias, ainda não haviam chegado aos quarenta anos. Ambos tinham os cabelos cortados e arrumados conforme figurino que trouxeram de Roma: os dele, curtos, ondulados e penteados para a frente; os dela longos, igualmente ondulados, cachos pendentes que lhe emolduravam o rosto.
Antipas era de baixa estatura e obeso. Tinha a fronte sucinta, o nariz convexo, os lábios entesados. A barba resumia-se a cintas felpudas que desciam desde a altura das hélices das orelhas e convergiam para um cavanhaque esquinado. Tal qual uma pirâmide invertida: a base colada no queixo quadrado e arrogante; o vértice a apontar para o corpo do esterno.
Herodias era magra sem ser descarnada, esbelta sem ser plana e ovalada como uma prancha de surfe. Faces timidamente encovadas, olhar distante, testa franzida, boca pequena e lábios provocantes. Trazia estampado no rosto um semblante amargurado.
Já Salomé, a tirar pela idade, ainda transitava na adolescência. Mas já botara corpo de mulher feita e era de uma formosura que espirava feitiço: as íris, de um âmbar cambiante aos caprichos da luz, disparavam olhar manhoso e desafiador; os lábios, a plagiarem a flor-do-beijo e como que de propósito sempre entreabertos, sugeriam libidinosa oferenda; os seios, empinados e agressivos, convocavam lembranças de semiesferas de romã. O resto do corpo era percorrido por encantos acintosos: ventre arredio, quadris sensualmente comedidos, coxas rígidas, trigueiras e carnudas, nádegas maciças e ornamentadas com covinhas de Vênus.
Não havia homem que não a cobiçasse. Entre eles o monarca, de quem sobrinha e filha adotiva. Ele, aliás, muito mais do que qualquer outro. O que já não era segredo para ninguém, tal o escancaramento com que a desnudava e a possuía com os olhos. Tanto mais quando embriagado. O que era o caso naquela noite de esbórnia.
Herodias, como sempre, fazia de conta que não percebia a cupidez devassa do marido. Alguém poderia acreditar que tal indiferença apenas acontecia no meio do povo e que na intimidade da alcova não era bem assim. Mas não dá para acreditar nisso. Mulher astuciosa e interesseira que nem ela, conhecia o marido por dentro e por fora: orgulhoso, prepotente, irascível e impiedoso. E em assim o conhecendo sabia que lhe atiçar a fogueira da ira era arriscar ser expulsa do leito régio e despejada do palácio, sem dó nem piedade.
Melhor fazer de conta que não via, embora visse. Nem a franqueza rejeita a prudência, segredava ela aos seus colares, brincos e anéis.

O monarca, àquela altura, já estava mais ébrio do que qualquer outro dos atores naquela barulhenta e alvoroçada festança. O que era atestado pela voz engrolada, o tórax feito um pêndulo e os gestos desgovernados. Também pelos passos trôpegos, quando se ergueu cambaleante, duas ou três vezes, com o anúncio sussurrado de que carecia de desoprimir a bexiga.
Já passava da meia-noite quando ele, olhos injetados e bochechas coradas, chamou Salomé ao pé dele. Esvaziado de inibições e a tropeçar nas palavras, começou a pedir e logo mais fingir implorar que ela dançasse para ele. Tal qual vez por outra o fazia na privança dos jardins palacianos, quando Herodias não estava por perto.
Salomé ensaiou ardilosamente se esquivar. Havia muita gente. O que a deixava envergonhada. Mas ele não pensava em nada mais do que o quanto vê-la dançar lhe ferventava a luxúria. Ele era o soberano e queria vê-la a dançar… ponto final. Mesmo sendo ela quem era. Os tiranos não têm parentes; têm súditos, ainda que gente do seu mesmo sangue.
Mas Antipas não quis se valer da persuasão imperativa. Ladino como desde sempre aprendera a ser, logo viu serventia em assanhar a vaidade e catucar a cupidez da enteada. Dance e eu te darei o que quiseres, simulou apequenar-se o soberano. Seja lá o que for. É somente dizer e pronto. Eu te darei. E solenemente arrematou: Palavra de rei é lei.
Um rubor cálido inflamou as faces de Salomé. Ela sorriu um sorriso enigmático, foi até Herodias, inclinou-se, segredou-lhe alguma coisa e levou o ouvido a quase lhe roçar os lábios da mãe. Não demorou mais do que dois ou três minutos. Ergueu-se, beijou a mão da rainha, em sinal de rendição, mais uma vez sorriu o mesmo sorriso ambíguo e regressou à presença do monarca.
Logo estava sozinha no centro do salão, os pés descalços e envolta num véu diáfano que lhe denunciava a impudica nudez. Passeava em seus lábios um malicioso sorriso. E se pôs a dançar.
As evoluções obedeciam a coreografia candidamente licenciosa. Os movimentos, ao tempo em que o espetáculo decorria, evoluíam em espontaneidade e ousadia. Pouco a pouco o acanhamento se esvaiu de um todo e já era de propósito que ela fazia com que as coxas e os seios escapulissem do duvidoso recato da veste translúcida.
Ela bem sabia como usar o corpo inteiro para atear a chama da volúpia: o esvoaçar dos cabelos de um castanho acobreado, a manha travessa do olhar imantado, a gesticulação aliciante, o bailado libertino do ventre, a insinuação lúbrica dos requebros que delatavam a mandinga das nádegas desafiadoras.
Estava montada a cena glamourosa: o monarca não conseguia disfarçar o êxtase; Herodias não escondia a inquietude de quem aguarda o crisma de um triunfo; os convivas estrangulavam as exclamações gozosas.
Tudo isso, é preciso dizer, segundo alguns relatos orais que venceram séculos. Embora não se possa dizer se realistas ou fabulados. Nem mesmo se a dançarina acudia ou não por Salomé. Não há nada que assanhe mais a mente fértil dos encrenqueiros que o escândalo.
Ainda assim, seriam recolhidos e recontados, em dias muito mais recentes. Ora pela fantasia de poetas e prosadores, libretistas e compositores, ora por atores, roteiristas e diretores hollywoodianos.
A partir daquele instante Salomé encarnou um mito. Mas até os mitos evaporam com o tempo.

Terminado o enlevo açoitado pela dança, Salomé regressou ao pé de Herodes Antipas. De longe permutou olhares com a mãe e disparou: Quero a cabeça de João Batista. O tetrarca estremeceu, negou-se a acreditar e hesitou. Isso é bem coisa da tua mãe, rosnou agastado.
A ele não parecia sensato agravar o reboliço que já fora causado pela prisão daquele homem que o populacho aclamava como profeta. Não seria sábio alancear a ferida.
Seria, quase que com certeza, o que faltava para semear uma insurreição, talvez sangrenta. O que lhe atrairia a inevitável e impiedosa ira de Tibério César e faria trepidar o seu trono. Até mesmo poria em risco a sua vida e as de Herodias e Salomé.

Desapontada com a vexatória retração do monarca, a princesa indignou-se. Que soberano era aquele que não honrava a própria palavra? Era urgente calar aquele tal de pregador de pele tostada pela insolação perversa do deserto da Judeia e de quem se dizia somente se alimentar de gafanhotos e mel silvestre. Todo mundo sabia que ele se aproveitava da eloquência e das parábolas para enlamear o nome de Herodias.
Aonde quer que fosse, em suas romarias apostolares, bradava que naquela mulher habitava uma alma decaída. Adúltera e incestuosa, seria uma discípula e emissária de satanás. Bastava ver que abandonara o marido para se amasiar com um meio-irmão dele. O que ultrajava a Lei Mosaica.
Herodias sabia de cada gesto e palavra daquele lunático (como ela dizia). Muitos eram os paus-mandados que, por ordem dela, serviam como infiltrados entre os discípulos do missionário. Eles lhe traziam relatórios pormenorizados de tudo o que era dito contra ela. E a cada vez ela mais se enfuriava. Aquele difamador teria de ser calado com urgência. Fosse qual fosse o meio que se tivesse para lhe entupir a garganta maldizente.
Em poucas palavras, ela o odiava de toda sua alma, de todo seu coração e de todo seu entendimento. Um rancor que se empenhava em semear no juízo de Antipas e de Salomé: o marido invocava ponderação; a filha tomava as dores da mãe, mas não tinha poder de decisão.
Até o dia em que o tetrarca, depois de muito matutar, ordenou que o pregador fosse preso e despejado na masmorra da fortaleza real de Maqueronte. Fizera-se, em parte, a vontade de Herodias.
Ela, porém, não se dava por satisfeita. Se ele livre era um incendiário, mais perigoso tê-lo encarcerado. Enquanto se demorasse vivo a multidão o veria como vítima. Permaneceria a sua influência sobre os seguidores e ela não se livraria da perseguição. Era preciso dar-lhe fim de uma vez por todas. Tolerar o inimigo é fortalecê-lo, martelava ela ao pé do ouvido do marido. Inimigo do trono não se aprisiona: elimina-se.

Ciente da promessa impulsiva de Antipas, Herodias concluiu que havia chegado a hora da vindita. Ela, finalmente, poderia se livrar das arremetidas insultuosas daquele louco varrido, que andava enfiado em uma veste bizarra de pele de camelo e não perdia uma só oportunidade para a maldizer.
Inquietou-se, contudo, ao sentir que o marido vacilava, apesar de firmemente desafiado por Salomé. Foi quando, desde o assento em que estava, começou gesticular impaciente para a filha. Um empenho desesperado para estimulá-la a não abrir mão do cumprimento da promessa.
A negociação avançou. Chegou o ponto em que Herodes Antipas, finalmente, se sentiu sitiado. Ser infiel à sua própria palavra, na presença daquela multidão de convidados, pesaria contra a sua credibilidade como monarca.
Qual seria a reação da gente da corte? Qual o conceito que dele formariam os dignitários de outros reinos que vieram felicitá-lo no dia do seu aniversário? Além do mais, encomendaria desavenças com Salomé e Herodias.
Receava, sim, que a retórica veemente daquele dito profeta incendiasse o reino. Razão por que determinara a sua prisão. Mas também temia, com muito mais razão, que ordenar a sua execução pudesse desencadear uma rebelião sangrenta. O que certamente lhe custaria a ruína da confiança de Roma e, com isso, ver seu trono desmoronar.
Ainda que a contragosto cedeu. Convocou um soldado da sua guarda pessoal e mandou fosse à masmorra e transmitisse ao carrasco-geral do reino, de nome Judas, a ordem para arrancar fora a cabeça do rebelde e maledicente pregador. E mais… que o próprio verdugo pusesse a cabeça decepada em uma bandeja de prata, trouxesse a prenda sinistra ao salão em que se dava o festim e a entregasse a Salomé.
Ordem dada, ordem cumprida.

Quando Saul adentrou o salão e deu de frente com a multidão alvoroçada de convidados, trazia semblante que não expunha qualquer rascunho de desagrado. Mas a verdade era que estava constrangido. O que não viria, certamente, da natureza macabra da encomenda. Há muito era íntimo dos cadáveres amputados de tantos infelizes que decapitara.
O que na verdade o amofinava era aquela insólita missão que recebera, como se fosse um reles serviçal desprovido de qualquer habilidade pontual. Agredia a sua autoestima. Sabia-se um escravo. Mas o era por se ter espontaneamente dado a vender como cativo, para honrar dívidas que não tivera como solver. E ninguém poderia negar o quão, desde lá, enriquecera-se a lista dos seus relevantes e eficazes serviços prestados ao trono.
Há anos vinha construindo um vasto currículo como torturador-mor e degolador-geral do reino. E tinha orgulho da sua competência como especialista em ambas as artes.
Que fosse a oferenda levada, por exemplo, por Cuza, o mordomo real. Nunca por ele, eis que criativo, inclemente e renomado executor de penas capitais. Corria o risco de ter abalado e até demolido o seu conceito no meio da soldadesca e do mundo de presos políticos entulhados nas masmorras de Maqueronte e de outras fortalezas. A perícia em fazer o que seja não pergunta por valores morais ou preceitos religiosos; é a eficiência ou não que a qualifica.
Entretanto, não era o bastante temerário para desobedecer a uma ordem do seu soberano. Tanto mais do entufado, vingativo e perverso Herodes Antipas. A mais mínima réstia de resistência ou desagrado poderia lhe valer passar o resto dos seus dias apodrecendo em uma enxovia insalubre.
E muito mais desassossegador era saber que estaria entre prisioneiros que tinham amargado o seu virtuosismo na edificante arte da tortura. Não se lembrava de nem um encarcerado sequer a quem não dobrara. Mais dor menos dor, o desventurado terminava por confessar até crimes que não cometera. E Saul não duvidava de que aquela gente que supliciara não tinha alcance e grandeza de espírito para reconhecer que ele não mais fizera do que cumprir ordens.
Uma escusa que nem os destroços de dois milênios conseguiram fazer obsoleta. A mesma que Saul teria invocado no Tribunal de Nuremberg, caso a corte já existisse naqueles dias remotos e ele tivesse sido mão longa de ancestral Adolf Eichmann ou Josef Mengele. Pior, ainda, se o soberano tivesse um daqueles seus ataques apopléticos e prescrevesse contra ele a mesma receita que há anos o fazia aviar e aplicar a centenas de desafortunados.
Era preciso se preservar. Além do mais, já estava bem ali o shemitá. E sabia que no ano sabático, pela receita do Deuteronômio, seria obrigatoriamente alforriado. Mas não somente isso: receberia do seu senhor (um nobre dos corredores palacianos) gado, cereais, vinho e outros haveres. Um tipo de compensação pelos serviços como cativo. Ele poderia voltar a respirar como qualquer galileu livre e não mais como aquele pé-rapado que vivia esmagado pela indigência e afogado em dívidas.
Não havia outro jeito, a não ser botar os melindres de lado e cumprir à risca o comando recebido. Lá foi ele, então, a engolir, calado, a indignação que soube converter num mundo de mesuras açucaradas. Conduziu a bandeja sinistra e a entregou à princesa.
Ele nunca vira Salomé antes. Pelo menos de tão perto. Deslumbrou-se. E sabendo que aquele nome sugere serenidade e altruísmo, somente poderia confiar que ela tinha uma alma generosa e era praticante e estimuladora da concórdia e da justiça.
Mas não era bem assim. Não tanto por culpa ela (pode alguém dizer). Pela ascendência da mãe, Herodías, mais arrogante, rancorosa e retaliadora que o próprio tetrarca. Tão indigente de escrúpulos (pelo que é voz corrente), que não se envergonhava de confessar à filha que abandonara o marido por interesse. O pai de Salomé era um príncipe carente de autoridade e despossuído de grande fortuna. Nada mais certo do que trocá-lo por um monarca eminente pela mão de ferro, pelo cofre fornido e pelo conluio com Roma. As duas teriam saído a ganhar. Não tinha do que se envergonhar. Não se arrependia.

Consta que a cabeça de João Batista nunca regressou ao pó de onde veio. Sabe-se, porém, que virou relíquia andarilha que rodou o mundo e hoje repousa em quatro ou cinco lugares ao mesmo tempo. Daí não se poder afirmar se ao menos uma é autêntica ou se nem uma única o é.
Quem quiser ser amaldiçoado, contudo, que diga aos cristãos que foram em vão o seu ministério, as suas predições e o seu martírio. Para eles, o messias por ele anunciado teria vindo, embora não tenha sido reconhecido pelo seu próprio povo. Se bem que tantos que dizem crer no prometido continuem a tentar enganá-lo, ao fazerem de conta que aprenderam as suas lições e praticam a sua doutrina.
Acerca de Saul comenta-se que foi alforriado cerca de um ano mais tarde. Teria recebido a compensação que a lei lhe garantia e sumido nas encruzilhadas da história. Mas há rumores de que se desfez de tudo e virou apóstolo do homem sábio prenunciado por João, assim como a mulher de Cuza, o mordomo de Herodes Antipas.
Teria terminado os seus dias na Roma do Imperador Nero César. Embora com mais de noventa anos, caduco, quase cego e dependendo do socorro alheio para se pôr de pé e se arrastar, foi crucificado entre os ditos terroristas que, à escolha do monarca, teriam incendiado a cidade. O tirano, ao fazer o que diz a sua justiça, carece de perguntar por inocência ou culpa; tem-se uma coisa ou outra segundo a sua vontade.
Já Herodes Antipas foi mais tarde destronado por Calígula e deportado para a Gália. Não há notícia de que Herodias o tenha trocado por outro parente ou aderente. Pelo visto ela até o acompanhou no exílio. E não foi porque o imperador também a condenasse ao desterro. Foi por sua livre e espontânea vontade que o fez. Nem ele nem ela jamais retornou à terra prometida.
De Salomé ninguém pode dizer que fim levou, pelo menos de ciência própria. Mas há os que sustentam que seguiu a vida como bailarina e a dançar a dança do ventre por onde passou. Outros que se casou com um nobre ou plebeu, pariu ao menos um filho e cumpriu um saldo de vida insosso, num opaco anonimato.
No dizer de alguns místicos, porém, o demônio cobrou e ela pagou o preço da sua iniquidade. Corroída pelo remorso ter-se-ia matado ao se pendurar pelo pescoço no galho de uma oliveira.
No dia seguinte, contudo, teria ressuscitado dos mortos e virado um zumbi. Seria por isso que, descerebrada como qualquer outro morto-vivo, ainda hoje estaria a vagar pelo mundo afora. E assim ficará até o dia em que Deus achar que é hora de lhe tomar a alma de volta.
Alcântara (Lisboa), setembro de 2023

About Carlos Mero

CARLOS MÉRO nasceu em Penedo (1949). Membro da Academia Alagoana de Letras, do IHGAL e da Confraria Queirosiana (PORT.). Já integrou o Comité Scientifique da Revue REFLEXOS - Université Toulouse Jean Jaurès – FR.). Principais publicações: O Beco das Sete Facadas e outras estórias alucinadas (Contos). São Paulo: Marco Zero. 2005 - A lua de fel do casal Valhamor (Conto). Revue L’Ordinaire Latino-Americain, nº 212/2010, Université de Toulouse II – Le Mirail. - O amargo regresso da desesperança. Revue Caravelle nº 96/2011 - Université de Toulouse II – Le Mirail - Travessias (Contos - coautora: Cristina Duarte-Simões). Maceió: Viva. 2013 - Graciliano Ramos: Um monde de peines. (Depoimento). Lille (Fr): The BookEdition. 2015 - A deserção de Maíra (Novela), in Inventando Maíra S. Paulo: Scortecci. 2016 - O chocalho da cascavel (Contos). S. Paulo: Scortecci. 2016 - Um gosto de mulher (Poesia). S. Paulo: Scortecci. 2018 (2ª edição) - Dias assombrados em Roma (Memórias). S. Paulo: Scortecci. 2ª ed. 2020 - Contos covidianos. S. Paulo: Scortecci. 1ª e 2ª eds. 2021); Os dois melros (Conto). Rev. de Portugal nº 18/2021; Eça de Queirós e Graciliano Ramos: Diálogo criativo (Palestra: Vila Nova de Gaia - 15.03.2022). Rev. de Portugal nº 19/2022.

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