O Par de Luvas Verdes
   13 de março de 2023   │     1:52  │  2

Alguns anos atrás, precisei pegar um voo para New York, onde meu marido passaria uma semana a trabalho. Após entrar em contato com a agência de viagens, decidimo-nos por um voo da Japan Airlines. Seria aquela a nossa primeira experiência com a companhia.
Na hora de embarcar, os funcionários do aeroporto mandaram os passageiros formarem duas filas: a business class, à esquerda, e a classe econômica, à direita. Na executiva, praticamente só havia… executivos! Todos eles japoneses, menos eu e meu esposo. Enquanto isso, os turistas brasileiros, da classe econômica, compunham uma fileira agitada e barulhenta. Foi então que pude observar a tremenda discrepância entre os dois grupos.
Como os japoneses são, racial e etnicamente, o povo mais homogêneo do mundo, notava-se a espantosa semelhança dos executivos prestes a subir no avião. Tinham todos o mesmo padrão físico: eram esguios e mediam em torno de 1,75m de altura. Nem mais baixos, nem mais altos. Todos possuíam, obviamente, os olhos puxados e os cabelos negros, curtos e lisos. Todos vestiam sisudos ternos pretos de corte impecável. Todos eles carregavam uma maletinha, do tipo James Bond. A mão livre permanecia enfiada no bolso da calça. De tão parecidos, aparentavam ter sido fabricados a partir do mesmo molde.


Deviam ser economistas ou advogados, empregados nos escritórios de fábricas automobilísticas, como a Mitsubishi ou a Toyota. Enfim, eram funcionários padronizados na faixa dos seus 35 anos, com semblantes neutros ou contemplativos. Aguardavam de maneira ordenada. Não se mexiam e nem saíam dos seus lugares. Não se viravam nem olhavam para os lados. Com uma postura reta, esperavam pacientemente a chamada para subir na aeronave. Imaginei que estivessem praticando alguma meditação oriental, daquelas essenciais na hora de uma longa espera.
Por sua vez, a turma da classe econômica era a mais diversificada possível. Bem sabemos que, ao contrário dos japoneses, os brasileiros formam a população mais heterogênea do planeta. Todas as etnias aqui aportaram e se miscigenaram ao longo de séculos. Portanto havia gente alta e gente baixa, pessoas formosas e algumas feias, indivíduos magrelos e outros bastante obesos.
Olhando-lhes atentamente a fisionomia, lembrei-me do quadro “Os operários”, da aclamada Tarsila de Amaral. A tela representa vários rostos, ilustrando a variedade racial das pessoas vindas de todas as partes do Brasil para trabalhar nas fábricas, principalmente em São Paulo, na década de 1930. Assim como as pessoas retratadas pela artista paulista, os passageiros da classe econômica possuíam feições e cútis dessemelhantes.
A disparidade entre penteados e colorações era grande. Podíamos observar crânios rapados, mechas alisadas ou crespas, cabelos arruivados ou louros, presos em tranças ou soltos. Em matéria de roupas, notavam-se modelos descolados, blusas despojadas, vestidinhos bregas, bermudas e camisetas de grifes. Enfim, havia de tudo um pouco para todos os gostos. Mais mesclado impossível!
Sendo os brasileiros particularmente faceiros e comunicativos, as pessoas da fila da direita papeavam animadamente. Um grupo gargalhava, alguns se viravam para trás e iniciavam conversas com os outros passageiros. Havia também crianças impacientes, gesticulando e saltitando sem parar. Enfim, era a algazarra festiva de um povo feliz à espera da tão sonhada viagem.
Já havíamos sido chamados para entrar no avião quando um passageiro atrasado chegou e se posicionou junto da gente. Virando a cabeça, descobri ao meu lado um japonês fora do comum: o cabelo, batendo-lhe nos ombros, estava artificialmente anelado. Na casa dos quarenta, o homem trajava um terno bege, amplo e trespassado, com volumosas ombreiras e, além disso, usava uma gravata com estampado chamativo e um lenço de bolso num tom roxo. Ao baixar os olhos, reparei a bainha italiana, revelando sapatos bicolores, nos tons caramelo e marfim. Para arrematar o visual insólito, ele segurava, com uma das mãos, uma bolsa volumosa, coberta por monogramas de uma famosa marca francesa.
No ato, fiquei intrigada, perguntando-me qual seria o motivo da viagem e qual seria a profissão daquele homem tão original, para não dizer “cafona”. Imaginei-o um jurado de programas televisivos, daqueles bem bizarros ou grotescos, muito apreciados pelos japoneses. Talvez fosse o galã de alguma novela melodramática. Ou seria ele um cantor popular?
Logo me veio um palpite: e se fosse um bandido ligado à máfia japonesa, a temida Yakuza, que costuma amputar os dedos dos integrantes que cometem deslizes ou desrespeitam as regras da organização? Discretamente, dei um jeito de observar as mãos do excêntrico sujeito. Não lhe faltava falange alguma.
Já dentro do avião, dei-me conta de que o modelo da nave fora especialmente adaptado, dada a exata divisão em duas classes: metade dos assentos na executiva e a outra metade na econômica. Isso explicava a grande quantidade, logo no embarque, dos funcionários padronizados de terno e gravata.
Antes da decolagem, uma graciosa aeromoça veio me oferecer água e suco de frutas. Na hora de se comunicar, sua fala era suave e seu inglês um tanto limitado. Mesmo assim, era extremamente afável e obsequiosa. Durante o voo, fiquei reparando nela com atenção. Seus sorrisos eram discretos, nada de escancarar a boca ou exibir os dentes, pois aquilo soa como vulgar na cultura japonesa. Seu gestual era encantador, movia as mãos com uma graça absoluta. Aparentava ser uma gueixa que tivesse optado por mudar de ramo.
Uma hora antes de aterrissar em New York, a comissária perguntou-me que tipo de café da manhã eu desejava: o americano ou o japonês? Evidentemente, pedi o desjejum nipônico. Assim que a moça me trouxe a bandeja, descobri uma pequena cumbuca com um arroz meio molhado. Numa taça, uma sopa de missô cheia de tofu. Sobre uma travessinha, uma pequena posta de salmão grelhado, junto com algas, alguns picles e três fatias de uma omelete adocicada. Em vez de café, pedi uma xícara de chá verde.
Como não sei manejar os hashi de bambu, tirei da minha bagagem de mão uma bolsinha que sempre me acompanha. Dentro, guardo perto de vinte adaptadores de plástico colorido. Esses clips se encaixam de forma simples nos pauzinhos, permitindo-me um manuseio descomplicado na hora de me fartar com iguarias orientais.
Após mais de uma semana batendo pernas em New York, já estávamos de volta para o Brasil. Logo após registrar as bagagens e passar pelo controle dos passaportes, ficamos aguardando o voo na sala de espera da Japan Airlines. Chegando lá, vi vários computadores colocados à disposição dos viajantes. Sentei-me diante de um deles para checar minha correspondência eletrônica.
Aproveitei para bisbilhotar de leve o que um japonês, sentado ao meu lado, estava assistindo. Fiquei besta ao descobrir que o monitor do homem estava dividido em cinco partes, uma maior e quatro menores. Juntas, todas elas cobriam a tela inteira. Numa dessas divisões, dava para assistir a uma animada partida de beisebol. Em outra pequena janela, havia o rosto de uma senhora papeando com esse meu vizinho munido de fones enfiados nos ouvidos. Na parte de baixo do painel, umas frases em inglês desfilavam ininterruptamente. Decerto, eram as últimas notícias do planeta.
Enquanto conversava com a mulher e assistia ao jogo, o asiático comia um sanduíche ao mesmo tempo em que teclava, com a outra mão disponível, um texto no seu e-mail, aberto em um dos cincos compartimentos. Era a primeira vez que eu me deparava com esse tipo de pessoa, comumente apelidada de Multitasker. Traduzindo: são indivíduos capazes de executar com destreza mais de uma atividade ao mesmo tempo, conseguindo alterná-las de forma ligeira.
Meia hora depois, como a voz da recepcionista anunciou que deveríamos nos dirigir ao portão de embarque, resolvi dar um pulinho no banheiro, para um pipi de precaução. Chegando lá, descobri um espaço extremamente asseado e cheiroso. Assim que entrei na cabine, percebi que o assento do vaso sanitário estava coberto por uma fina película de plástico transparente, daquelas que são renovadas automaticamente quando apertamos a descarga. Diante de tanta higiene, senti-me à vontade para sentar normalmente, em vez de urinar com o traseiro suspenso no ar.
Ao encostar no tal de assento, notei que ele estava deliciosamente quente. Intrigada, olhei ao meu redor. Avistei então um controle à minha direita, com o qual eu poderia regular a temperatura. Vi outros botões, apertei todos eles para averiguar quais eram suas funções. Um deles arremessou um jato posterior, bem traiçoeiro, que veio molhar meu derrière. Havia também um botão que acionava um astucioso jorro frontal, do tipo bidê, e outro que liberava um ar secante. Tive a leve sensação de ser um fusquinha recebendo um trato num lava-jato qualquer. Só faltaram os rolos de flanelas giratórios para polir-me as nádegas…
Como fui uma das primeiras pessoas a entrar na classe executiva, reparei que havia outros passageiros já instalados, uma vez que o voo vinha diretamente de Tóquio com escala em New York. Além de serem japoneses, a maioria desses viajantes usava máscaras de pano branco, tapando narizes e bocas. Na certa, deviam estar gripados e, como são extremamente educados e civilizados, não ousavam contaminar o restante dos passageiros. É preciso frisar que, naquele tempo, a pandemia do coronavírus estava longe de assolar a humanidade! Portanto o uso dessa proteção não era ainda obrigatório.
Durante o tempo em que as pessoas estavam entretidas acondicionando os pertences nos bagageiros, um senhor idoso passou por nós. Graças ao farto bigode guarnecendo-lhe o lábio superior, reconheci o ex-presidente José Sarney. Junto com uma pequena comitiva, subiu uma escada helicoidal que levava até uma resguardada primeira classe.
Distingui também umas quatro mulheres segurando crianças pacatas no colo. Assim como suas discretas mamães, os pequenos eram calados e disciplinados. Durante toda a viagem, não ouvi choro algum ou gritos de neném. De tão quietinhos, pensei até que fossem bonecos hiper-realistas de silicone, popularmente denominados de Reborn. Além disso, não lembro de ter visto alguém tentando trocar fraldas. Talvez as crianças usassem um modelo futurista, daqueles que desintegram qualquer dejeto automaticamente.
Costumo sofrer de insônia durante os voos noturnos. Para matar o tempo, peguei as três revistas compradas no aeroporto. Desinteressei-me rapidamente, pois só havia propaganda de produtos de luxo. Tentei assistir a um filme asiático, cuja personagem principal era uma cândida donzela com voz infantil e figurino de Lolita. O colorido das imagens era saturado e a trilha sonora melosa. Desisti prontamente dessa obra para lá de enjoativa.
Puxei então o magazine de bordo enfiado no bolso dorsal da poltrona situada na minha frente. Não adiantou de nada, pois os artigos estavam totalmente escritos em japonês. Mesmo assim, folheei a revista até chegar às páginas exibindo os produtos vendidos no avião. Havia uma profusão de apetrechos e inovações eletrônicas.
No meio disso tudo, reparei numa mercadoria em especial. Apesar de bastante insólita, não estranhei vê-la sendo oferecida durante um voo que dura, em média, umas onze horas. Era um tipo de almofada parecida com uma boia de nadar. Redonda e estufada, possuía um largo buraco central. Não havia dúvida, era um modelo terapêutico, daqueles usados pelas pessoas que sofrem de hemorroidas. Só não sei se algum viajante já teve a coragem de comprar e usar aquilo diante dos outros passageiros.
Eu ia fechar a revista quando descobri que poderia adquirir um avental e uma echarpe idênticos aos usados pelas comissárias da JAL. De cor laranja, possuíam um estampado discreto representando aviõezinhos coloridos. Pensei em comprá-los, para receber os amigos e oferecer um jantar à base de sushis e sashimis. Confesso: vez ou outra, sofro de impulsos consumistas meio estapafúrdios. Como já me conheço bem, sei que basta contar até trinta para o capricho logo passar. Assim sendo, nunca proporcionei um jantar temático, pois logo abandonei a incongruente ideia de me fantasiar de aeromoça nipônica.
Impaciente, decidi andar nos corredores para ativar a circulação e evitar uma trombose. Fiquei impressionada ao notar que tanto os executivos como os mascarados eram civilizados até na hora do sono. Todos estavam deitados bem comportados. Nada de ronquejar exageradamente ou de babar de boca aberta, nada de mudar de posição ou de se levantar para ir ao banheiro. Aparentavam ser uns “Cinderelos” à espera do beijo de uma bela moça trigueira que lhes fizesse acordar no país tropical.
Ao desembarcar em São Paulo, dirigíamo-nos ao controle dos passaportes quando, no meio dos passageiros, reconheci o espalhafatoso japonês de cabelos cacheados. Assim como nós, ele estava de volta após uma semana passada em New York. Estranhamente, ele vestia a mesma roupa que usara na viagem de ida. Repetiu o amplo terno bege, o lenço de bolso roxinho e o par de sapatos bicolores de malandro de opereta. Segurava firmemente a vistosa bolsona francesa.
Fiquei perplexa ao descobrir que suas mãos estavam enluvadas! Isso mesmo! O exuberante sujeito calçava um intrigante par de luvas de couro verde-garrafa! Teria tido ele alguma falange do dedo mindinho decepada durante um acerto de contas? Será que o elegante acessório servia para encobrir as sequelas da tortura infligida? Nunca saberei, dado que, após passar pela Polícia Federal, o extravagante oriental desapareceu na multidão que aguardava a entrega das bagagens. Levou consigo o mistério do que acontecera durante os sete dias passados na mais agitada metrópole do planeta…

About Chantal Jeanne Lafaye Frazão

Nossa autora, Chantal Jeanne Lafaye Frazão, nasceu nos arredores de Paris, em pleno baby-boom do pós-guerra. Foi viver na capital quando tinha apenas 21 anos. Pouco depois de se mudar, a jovem cruzou o caminho de um brasileiro chamado Antônio. Assim que colocou os olhos nele, ela soube que o destino havia enfim chegado à sua porta! Em pouco tempo se apaixonaram, casaram-se e foram viver em Maceió, no ano de 1979. Chantal virou rapidamente uma alagoana, aprendeu a preparar uns quitutes nordestinos como carne de sol, feijão tropeiro ou cozido com pirão. Lançou o livro Memórias de Uma Franco-Alagoana em 2019 — obra que, nesse mesmo ano, recebeu o Prêmio Notáveis da Cultura Alagoana, na sua 16ª edição. Mais recentemente, no dia 27 de abril de 2023, Chantal entrou na ilustre Academia Alagoana de Letras, ocupando agora a cadeira 33, anteriormente ocupada pela escritora e poetisa Lyzette Lyra. Acompanhando o esposo alagoano nas suas viagens de negócios, Chantal aproveitou a vida e aprontou em NYC, Londres e outros lugares onde sua curiosidade a fez vivenciar inúmeras aventuras, que soube transfigurar em histórias, através das quais o narrador pega o leitor pela mão e o leva para passear em variegas perambulações pelo mundo afora...

COMENTÁRIOS
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  1. Carlos Méro

    Chantal: tive gosto em reler esse seu relato. É leve, ágil, sem adornos desnecessários e bem-humorado. Um estímulo à leitura do seu “Memórias de uma franco-alagoana”.

    Reply

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