A coisa mais fácil do mundo é dizer “nós”. O termo encobre os participantes de uma ação, como “Nós fazemos o Brasil” ou “Nós somos a força que alavanca este país”. Mesmo que muitos não sintam isso ou não façam nada em prol de ações tão positivas como são essas, querem se incluir nesse conjunto de qualquer forma. E só querem se incluir porque o quadro é positivo e animador. Porque, se fosse negativo, não iriam falar dessa maneira, usando esse “nós”. Ninguém diz “Nós curtimos a derrocada do Brasil”, ainda que, perversamente, alguém possa desejar tal destino.
Uma coisa é, pois, o nome: Maria, José, Teresa, Beatriz, Marcelo… Nomear ou autonomear-se implica assumir certos riscos (algo parecido com “Por favor, não diga a ninguém que fui eu quem disse isso”). Já usar o minúsculo pronome “nós” é confortável. O pronome esconde os verdadeiros responsáveis pela ação ou pelo discurso.
A gramática não é nada boba. Sempre esteve ligada às efetivas realizações dos homens. Dizer o nome pode trazer problemas para quem o diz; servir-se do pronome pode ser a solução do problema.
Desde a aurora do mundo inventaram-se nomes e pronomes. E eles todos são correlatos de tensões e conflitos sociais. Pelo nome pode-se chegar à guerra; pelo pronome pode-se evitá-la. Até porque há muito cinismo no uso do pronome. Primeiro porque um “nós” nunca é homogêneo e uniforme. Por exemplo: pode-se afirmar, sem titubear, que os que votaram em Lula ou em Bolsonaro, cada grupo formando uma ala distinta, o fizeram por terem os mesmos propósitos e aspirações? Há, aí, evidentemente, muita mistura e muita impureza, como é a vida.
O “nós”, como um “eu” que alguém venha a pronunciar, é um termo móvel, que não tem significado em si mesmo, senão um referente. Quando Teresa diz “eu vi”, esse “eu” tem Teresa, certa Teresa, entre tantas Teresas, como referente. Mas, se é Marcos quem profere “eu”, esse “eu” é Marcos. Tudo muda de endereço ao dizer um simples pronome desse tipo.
Os pronomes, portanto, alguns pronomes, como é o caso dos pessoais do caso reto, privilegiam a mobilidade, necessária à existência (só não vai atrás do trio elétrico quem já morreu), e a diversidade (social, sexual, religiosa, étnica, de gênero etc.). Os nomes são mais conservadores e ajustam-se a políticas que emparedam o movimento e a diversidade (por isso é que Platão amava os nomes). Por sua vez, os pronomes são mais progressistas, mais democráticos, mas também mais ladinos e astuciosos, cheios de manhas e espertezas. Quem dá nome às coisas assume mais coragem e autenticidade (“Sou José”) e quem usa pronomes pessoais querem disfarçar sua participação nos eventos, se estes são suspeitos. Por isso, em geral, recorre-se ao pronome em situações de embaraço social. Principalmente se, no lugar de dizer “eu”, se disser “nós”.
Excelente artigo, Roberto. Com simplicidade, você aborda uma questão bem mais profunda do que aparenta. É um texto de quem conhece bem os meandros da linguagem.
Obrigado Heloísa. O espaço reservado ao próprio artigo já inibe a expansão da discussão. Mas vamos na medida do.possível dialogando com os conceitos e nos aventurando na pesquisa, sempre um chamado e um desafio.
Parabéns, professor Roberto Sarmento! Texto enriquecedor! Aliás, como sempre.