UM FANTASMA DE CARNE E OSSO
   7 de julho de 2023   │     8:26  │  0

JÁ TINHA MORRIDO UM MONTE DE VEZES. Era o que Fernando dizia, com o queixo empinado, o olhar faiscante, o peito estufado. Eu me lembro muito bem de seis, afiançava ele. É como se tivessem acontecido ontem, esforçava-se para afugentar os olhares atravessados dos descrentes e amortecer as caçoadas dos debochados.

Na primeira vez, pelo que tinha enigmaticamente armazenado na memória, seu nome era Noah ben Levi. Teria morrido de velhice e exaustão ao pé do Monte Nebo. Moisés mal havia dado as costas para a multidão e subido a encosta com passos desapressados. Daí por que, tal qual o libertador, não chegou a pôr os pés na terra de Canaã.

Séculos mais tarde, atendia pelo nome de Yohan bar Abbás e teria sido crucificado por ordem de Tito, o general romano que viraria imperador. Acusaram-no de cumplicidade com os Sicários, durante a primeira Grande Revolta Judaica. Pendurado na cruz, ainda padeceu o desespero de assistir, lá de longe, o fumaceiro que anunciava terem tocado fogo no Segundo Templo.

Séculos escoados, já ele respondia por Pedro Dias e foi abatido na batalha de Aljubarrota. Era um dos desmontados que vestiam as cores de Portugal. A sua garganta foi varada por um dardo descarregado por um arqueiro ou besteiro do exército do rei de Castela. No justo instante em que a cavalaria franco-castelhana debandava, após uma carga desastrada contra a vanguarda das tropas luso-inglesas.

Mais tarde foi o marujo Nuno Pedroso. Naufragou com a nau Esmeralda, que navegava com a segunda armada de Vasco da Gama. Estava ao largo de uma das Ilhas do mar da Arábia e Nuno teria sido um dos tripulantes arremessados ao mar, quando o barco adernou.

Por muito pouco tempo ele ainda se socorreu de uma barrica que boiava por perto. O que lhe rendeu a ilusão maltrapilha de que poderia sair são e salvo daquele apuro. Desaponto. Logo seria arrastado e engolido pelo sorvedouro que veio atrás do mergulho sem regresso da embarcação. Não sobrou ninguém para contar a história.

Ainda teria sido o tanoeiro Aires Bernal, que foi esfaqueado por um marido ciumento. Aconteceu na Rua dos Vinagres, em Lisboa. Passava da meia noite. A madrugada viera enxarcada por uma chuva impenitente. Bernal nem teve tempo para atinar com o que estaria sendo lavado com o seu sangue plebeu.

Já estendido no meio da rua, as entranhas e a vida a vazarem pela brecha rasgada ao pé do ventre, foi que pôde enxergar o rosto congesto do assassino. Ainda recordou que tinha apartado, duas semanas atrás, o dito cujo de um aragonês a quem surpreendera a fornicar com sua amante, uma tal Catherine de sobrenome desconhecido.

Logo Catherine, uma puta francesa com uma larga folha de serviços prestados a soldados, marinheiros e outros tipos. O que a qualificava com um vasto currículo de devassidão. Era, naquela altura, tão indigente de encantos quanto farta de senões. Seja por dentro, seja por fora. Além de amundiçada e encrenqueira, era zarolha e cambaia. Os cabelos estavam sempre gordurosos e alvoroçados. Os peitos eram murchos e descaídos, o ventre adiposo e franzido, os quartos abundantes e gelatinosas. Um buço encorpado, a simular um bigode importuno, descia desde o pé do pilar que intermedeia as narinas até chegar às bordas dos lábios que convergem para o arco de cupido. A voz, ganida por entre os dentes encardidos e arruinados, difundia um bafo catinguento que misturava alho, cebola e hidromel.

Viria, bem mais adiante, o martírio da cremação (enquanto ainda vivo e bulindo) numa das purificadoras fogueiras do Santo Ofício. Quanto a esta história, contudo, preferia guardar reserva.

 

 

Pelo que testificado em um livro empoeirado que ainda poderia estar na sacristia da Catedral de Nossa Senhora do Rosário, foi batizado como Fernando. Já nos registros notariais comparecia como Fernando de Bulhões de Carvalho Álvares. Pelo menos enquanto os assentamentos não foram devorados pelas traças, apesar do desvelo dos vigários e dos cartorários.

Se bem que, tivesse valido alguma coisa a predileção da mãe e do pai, deveria acudir por Otávio. Sucede que o Cônego Otacílio, ministro que oficiou o batismo, tinha uma rixa encarniçada com um frade que assinava esse mesmo nome. Embora o cônego sempre repisasse, em suas arrastadas homilias, a sublimidade do perdão e do amor ao próximo como a si mesmo. Mas não era o caso de uma arenga banal.

O desafeto era um franciscano empertigado e de maus bofes que se dizia ariano e gente da nobreza prussiana. Teria, no desenrolar de um sermão dominical, maltratado o octogenário cônego por sua pele saudosa das savanas africanas. Também uivou sobre o que seria batina sempre emborralhada, maneiras estouvadas, rosto achatado de cachorro pequinês, cérebro cujo tamanho competia com o de uma semente de laranja-de-umbigo. Se é que a tivesse.

Foi por isso mesmo que o magoado Cônego Otacílio, no instante em que castigava a moleira da criança com uma concha de água a ponto de congelar, não conseguiu soletrar o nome do intrigado. Resolveu, por sua conta e risco, apresentar o menino como Fernando e com esta graça inscrevê-lo no fervoroso e indulgente rebanho do Bom Pastor.

E explicou que Fernando é que era um nome de respeito. Foi com ele que havia sido batizado o santo venerado naquele 13 de junho: Santo Antônio de Pádua, que não era outro senão o de Lisboa. Aliás, o primeiro padroeiro da paróquia de Penedo.

Tratava-se de um taumaturgo que, de tão prestigiado pelo Pai Eterno, tinha o dom de estar em dois lugares ao mesmo tempo. Ademais, de tão iluminados os seus sermões, até os peixes, para ouvi-lo, arriscavam as cabeças fora d´água.

A mãe e o pai do menino, apesar da surpresa, não ousaram contrariar o provecto e ressentido sacerdote. Embora ele, com aquela reviravolta, estivesse a inclusive desautorizar o sóbrio monograma bordado no traje de pagão com que o menino estava vestido. O mesmo que, como de costume, era visto em cada peça do guarda-roupa da criança: lençóis, travesseiros, toalhas de banho, mantas e assim por diante.

 

 

O pai de Fernando atendia por Diogo Henriques de Carvalho Álvares. Era um português de encolhida estatura, a testa encompridada pela careca lustrosa, ventre vultoso, sisudo e com o imerecido conceito de grosseiro e avarento com as palavras, com os gestos e com os dinheiros. Insistia que descendia de uma família de cristãos-novos que tinha raízes em Évora e Lamego.

Até dava por certo que um dos seus ancestrais do Alentejo teria vivido no Brasil e mais pontualmente em Penedo, onde fora sequestrado pelos esbirros do Santo Ofício e logo mais remetido a Lisboa, acorrentado e jogado no porão insalubre de uma caravela. Lá, no Reino, havia sido torturado pelos piedosos juízes eclesiásticos e queimado vivo numa das fogueiras que o Santo Ofício mandou o rei fazer arranjar e atear fogo.

Fernando cresceu a ouvir aqueles relatos. Não dava uma palavra sequer. Só escutava. E quanto mais crescia mais se convencia de que o pai só podia ter as suas razões. Algum dia ainda tiraria aquela história a limpo.

Diogo Henriques chegara a Penedo quando nem tinha alcançado a marca dos vinte anos. Viera tentar a vida a convite de um parente do ramo de Lamego, cujos ancestrais teriam chegado e se assentado na beira do São Francisco. Isso, desde o tempo em que o Conde de Alegrete era o Governador-Geral de Pernambuco.

Mal chegou e já fez uso do pouco dinheiro que trouxe para fundar o Armazém Lusitano. Foi de onde passou a arrecadar seu sustento e, logo depois, da sua família. Era um empório que se prestava a importar bacalhau e fornecê-lo aos comerciantes do Baixo São Francisco e redondezas. Um negócio que começou e durou próspero por pelo menos vinte anos. Até que começou a minguar e ruíu de vez.

De repente, Diogo Henriques se viu sufocado por uma estação de vacas magras. E culpava a idade por já não ter ânimo para recomeçar. Já estou mais pra lá do que pra cá, lamuriava.

Já a mãe, Dona Isaltina Menezes Álvares, era gente de Penedo. Percorrera a meninez e a mocidade na Rua do Rosário Estreito. Vinha de uma família de mínimas posses. Seu pai era caixeiro em uma loja de tecidos e sua mãe enfermeira na Santa Casa de Misericórdia. Nunca deixaram, contudo, que isso lhes adoecesse a autoestima. Confiavam que não ter não é não ser.

Desde que o empório começou a derrapar, Isaltina se viu na obrigação de ajudar nas despesas da casa. O que fazia com a mixe remuneração como professora primária em escola do governo. Um ganho que mais humilhava do que remunerava.

Mas os poderosos tinham, na ponta da língua, uma convincente explicação para tal retribuição mesquinha: quase não sobrava dinheiro depois que custeada, mês a mês, a opulência dos donos do poder e seus capachos.

Isaltina não perdia tempo a chorar pelo leite derramado. Quem a conheceu dá testemunho de que era uma mulher de fibra, refletida e reservada. Media pouco mais de um metro e meio de altura e era mais pra gorda do que pra magra. Falam que, por causa da espinha avariada, caminhava meio corcovada e pensa a bombordo. Era sorridente por índole e meticulosa por vocação, detestava descasos e abominava bate-bocas. No mais, tirava tudo por menos.

Era muito estimada. Mas não era unanimidade. Havia aqueles que não gostavam dela, embora nem tantos. Talvez porque não se metesse na vida de ninguém e por isso mesmo desagradasse as faladeiras mais empolgadas. Mas isso não é novidade: em bando de urubus quem não gosta de carniça é intruso.

Dentro de casa, a rigidez de Diogo Henriques era compensada pela mansidão de Isaltina. Tinham lá as suas arengas. Mas não duravam e as sabiam disfarçar com talento. Não tinham que dar satisfação das suas vidas a ninguém.

Passada a porta da rua tinha-se um tabernáculo que somente os da casa podiam adentrar. Para ambos, cada casal, na intimidade de sua morada, fala em seu próprio idioma e promulga as próprias leis de convivência.

A verdade é que foi Fernando quem mais saiu ganhando nessa história toda: cresceu sem exemplos de intolerância dentro de casa. Para mais, não se recordava de uma palmada sequer e muito menos de algum corretivo com a ingerência autoritária e truculenta do cinturão ou da palmatória.

 

 

Se da meninez não tinha traquinagens para contar, da mocidade somente podia relatar que, quando não estava na escola, consumia as horas na Biblioteca Pública, afundado em impermeáveis matutações e leituras de tudo um pouco. Não se deixava subjugar por preferências intransigentes.

Fugia das folias da meninada. Principalmente das peladas e dos banhos arriscados nas águas barrentas do rio, a desafiar a correnteza, as bacias e as piranhas. O que impunha inventasse as desculpas mais disparatadas. Não seria aconselhável, até para que preservasse o bom nome, que a molecada o tomasse por covarde ou metido a besta.

Somente não se esquivava dos arrasta-pés dos sábados à noite, em casa de um e de outro. Até preferiria também escapulir. Não eram bem ao seu gosto as conversas enjoadas dos fanfarrões, a se gabarem dos xumbregos o mais das vezes inventados, cada um na esperança vulgar de parecer mais macho do que o outro. Entojo que se alargava para as bebedeiras e para as brigas por ninharias. Não carecia de refúgio para fumar sem o patrulhamento dos olhares repressores da mãe e do pai. Tinha alergia a fumaça.

Acontece que tais saraus lhe tinham proveitos: esfregar-se nas meninas, fungar naqueles pescoços perfumados, experimentar o deleite do roçado das coxas e dos toques dos peitos empinados. O que levava seu corpo a se exaltar numa rigidez faminta.

Era o que o aprontava para os êxtases solitários a cada banho matinal, desatados pelas fantasias que o punham dentro daqueles corpos tépidos e vibrantes Tinha certeza de que se esforçavam para não se confessarem tão sôfregos quanto ficavam as suas próprias carnes.

Danças de rostos colados que de vez em quando era empatado por um castigo a que a natureza o condenara: manchas de um vermelhão intenso lhe pontuavam a pele da cabeça aos pés, acompanhadas de uma coceira irritante que mais do que enervá-lo o enraivecia. Nunca houve médico que desse jeito.

Nem Doutor Gregório Carvalhal, apesar de tão louvado pela profundidade da sua ciência e largueza da experiência, conseguiu avistar a fonte daquela moléstia enigmática. Quem mais conseguiu aliviá-lo e mesmo distanciar as infestações, foi a acreditada rezadeira Maria Pelu, com suas garrafadas, seus unguentos caseiros e suas benções com ramos de arruda.

Os de anel no dedo quando muito especulavam e prescreviam remédios que mais favoreciam os apurados dos farmacêuticos do que faziam efeito no enfermo. Um deles, certa feita, aventou que poderia se tratar de enfermidade autoimune. Para Fernando, contudo, não passava de um palpite que se prestava a esconder o desconhecimento da natureza da mazela.

 

 

Não há quem desminta que ainda criança já carregava aquele ar de suspeitoso desconsolo, grudado nos olhos afundados e que davam a parecer importados das terras do amanhecer. As iris eram duas gemas olho de tigre. O nariz expunha-se extenso e pontudo. Os lábios delgados sugeriam timidez ou retraimento. Era troncudo, a pele de um branco acobreado, os gestos preguiçosos, raros sorrisos e contadas palavras.

A formosura, pelo visto, nunca fora sua parceira. Mas tinha um certo feitiço. O que, talvez, lhe viesse daquela expressão melancólica de fingido abandono. Um atributo que encantava as moçoilas.

 

 

No dia em que ninguém comemorou o seu trigésimo aniversário, Fernando conheceu Leonor. Era dia de quermesse de festa de fim de ano na Rua do Comércio. Nem ele poderia explicar o porquê de fraturar o seu enclausuramento escolhido e que logo mais já teria durado uma década. Começara no ano em que o pai e a mãe

morreram e a orfandade o atropelou. E piorou quando, logo depois, se cansou de dar aulas particulares de gramática.

Desde então, sair de casa só mesmo depois das dez horas da noite, quando sabia pouco provável dar de frente com algum passante e ser obrigado a corresponder a saudações no mais das vezes mecânicas e, portanto, impessoais. Até chegava a simular não conhecer os conhecidos, quando raramente cruzava com eles em suas caminhadas.

Era o seu ritual para estirar as pernas, comentava com seus botões. Costumava descer a rua do Rosário Estreito, atravessar o Largo do Rosário Largo, passar pela porta do Convento Nossa Senhora dos Anjos e seguir ladeira abaixo até chegar na beira do rio.

Lá ficava horas e horas, os cotovelos repousados no parapeito que percorria o cais, a sondar a escuridão que abraçava o rio, vasculhar o silêncio e escutar a cantata abafada e buliçosa da água. Melhor nas noites enluaradas, quando podia espionar a correnteza e patrulhar os pedaços de chão que o rio arrancava das margens e carregava nas costas para uma devota oferenda ao oceano.

Trazia sempre com ele um caderno pautado e uma caneta esferográfica. Servia para ir anotando o que tirava das suas reflexões sobre a vida e a morte. Sobre tudo, enfim, que lhe aportava no juízo. O que até lhe valera uma a alcunha de Professor Coruja. Uma denúncia dos seus hábitos noturnos, da sua língua afiada e da sua fama de pensador.

As pessoas chegavam a decorar os seus ditos e a repeti-los a torto e a direito. O Cônego Otacílio, por exemplo, chegou a tomar por mote, para uma das suas gaguejadas homilias uma frase solta que escutara de Fernando: Feliz quem festeja a vida, ainda que maltratado pelo fantasma da constante iminência da morte.

 

 

Fernando jamais poderia imaginar que conhecer Leonor mudaria a sua vida da água para o vinho. Ela não contava mais de dezoito anos. Tinha tudo para acarinhar os seus gostos e espertar-lhe os apetites: cabelos de um castanho espontâneo, rosto ovalado e pele colorida por uma morenice desinibida. Os olhos eram ungidos com mel de abelha. Tinha o nariz afilado, um sorriso disponível e convincente, peitos nem fartos nem miúdos, barriga ausente, nádegas comedidas, pernas longas, coxas encorpadas, caminhar insinuante, voz sossegada.

Olharam-se de longe, permutaram sorrisos desconfiados que logo viraram confiantes, disfarçaram que não foi de propósito que se aproximaram. Vieram, então, dois dedos de uma prosa que não calaria dali por diante.

Quando se deram conta já eram íntimos. Vieram as confidências, seguiram-se os abraços, os afagos, os beijos. Não foi preciso mais do que um mês para que dormissem debaixo do mesmo lençol, os corpos nus, suados e saciados. Um outro mês e ela se mudou, de malas e bagagens, para a casa dele. Passaram a viver sob o mesmo telhado.

O que desatou um escândalo que varreu a cidade de cima a baixo e levou as viúvas, vitalinas e beatas ao desespero. E os homens, por mais que não dessem o braço a torcer, a uma inveja desaforada por não serem eles os agraciados com os ímpetos eróticos de Leonor, que imaginavam ensinados por Afrodite.

Nunca se casariam. Sustentava ele que viviam união de consenso afetivo e não protocolar. Ela somente assentia com sorrisos cabreiros e acenos inconclusivos. As convenções mais simulam do que validam as uniões, filosofava Fernando. Melhor estarmos amigados e contentes do que juntos por um fingimento imposto por uma mentira oficial e infelizes.

O fato é que aprenderam a viver juntos, sem que fosse preciso proclamação de juiz, bendição de algum tonsurado e aliança no dedo. O que já era o bastante para incomodar as almas pegajosas. A felicidade dos outros maltrata os invejosos, rosnava Fernando.

 

 

Delírio ou não, Fernando botou na cabeça que virara invisível. Quando pouco, transparente. E por isso mesmo, depois que enterrou o pai e a mãe, o que já se disse que se deu no mesmo ano, vivia nu entre as quatro paredes da morada em que se isolara. O que continuou depois de amancebado com Leonor.

Vinte anos mais tarde e era assim desprevenido que, muitas e muitas vezes, ia fumar o seu cigarro na varanda, após se regalar com os afetos e calores de Leonor. O que era causa de reboliço e indignação na vizinhança.

Os maiores esperneios eram de Albertina e Marieta, duas vitalinas encarquilhadas que viviam na casa defronte. Embora não seja invenção dizer que se deleitavam ao apreciar os dotes daquele homem maduro, nem bonito nem feio, de peito peludo e músculos enfáticos.

Mas era o instinto repousado de Fernando que mais chamava as vistas já curtas das duas irmãs solteironas e lhes assanhava os delírios. Quem dera pudessem acolhê-lo em seus braços pelancudos, sentir suas carnes despertarem, entregarem-lhe aquele vulcão de desejos que elas desperdiçaram a vida inteira! E morriam de inveja de Leonor, ao a fantasiarem nua e ofegante, enquanto invadida por tamanha pujança viril e voraz.

Mas se há de convir que a nudez era o que de melhor podia combinar com quem tantas vezes havia desencarnado e regressado, como dizia, à duvidosa utilidade da aventura de viver. Depois de tantas idas e vindas, não via como desatino imaginar-se um inédito fantasma de carne e osso.

A maturidade arrastou-se, a meia-idade instalou-se e se viu na idade em que se começa a se dar conta de que o entorno está a ficar despovoado. Somem, às vezes sem aviso prévio, parentes, aderentes, achegados e até desafetos.

Para Fernando, era ele um mosaico em que cada um dos que estavam em sua vida ou por ela seria um ladrilho. A cada vez que sepultava um deles, um dos seus ladrilhos era enterrado junto. O que já era bastante para que ele, aos poucos, fosse a ficar desconfigurado.

 

 

Dizia-se nascido, crescido e jurado de ficar gagá, morrer e ser esquecido em Penedo. Até escrevera uma carta que haveria de permanecer inédita e sob a guarda de Leonor, até o dia em que ele esticasse as canelas. Rogava que não lhe fizessem a desfeita de enterrá-lo. Nem que fosse no Père Lachaise, numa tumba vizinha à de Chopin ou à de Oscar Wilde, ou nas catacumbas da Basílica de São Pedro, ao lado do jazigo do Papa João Paulo II.

O que rogava era que lhe torrassem as carnes e os ossos, para se não dar lugar a um cortejo maçante e pesaroso, pelo mais certo reduzido à meia dúzia de penitentes que segurariam nas alças do caixão. Muito menos à exposição do seu corpo frio e inerte, estirado em um ataúde barato, a tampa sinistramente escorada na parede ao lado… ele afundado em flores constrangidas pela missão ingrata de disfarçar o odor de morte que tanto nauseia e aterroriza os viventes.

As cinzas? Que as atirassem no rio. E que o fizessem de cima da Pedra de São Pedro, para que a sua memória não fosse insultada por choradeiras ensaiadas e discursos melosos de encomenda.

Para que mausoléu vaidosamente vestido com mármore comprado a peso de ouro, onde exposto um seu retrato cujo destino seria ser consumido pela inclemência da quentura e da umidade, a se alternarem num furor destrutivo? A lembrança dos que morreram é tão gasosa quanto o ar que respiraram, lia-se no primeiro parágrafo da carta que deixava aos que ligeiro o esqueceriam.

Quem o quisesse louvar ou deslustrar pelo que era ou pelo que não era, pelo que fez ou pelo que deixou de fazer, que o fizesse enquanto estivesse vivo. Depois de morto não há quem possa distinguir se francos ou hipócritas os aplausos nem se covardes ou perversos os insultos, predicava com irrefreada obstinação.

 

 

Fernando tinha lá os seus impulsos. Um deles o empurrava a escrever uns poemas que ele mesmo enxergava desajeitados. Ainda assim, sonhava que, mais dias ou menos dias, haveria de os ajuntar em um livro. Um livro de verdade, enchia a boca. Daqueles que ficam de pé sozinhos. Fora disso, pode-se ter um impresso, uma brochura, um folheto… nunca um livro, irritava-se. Somente o levaria a alguma editora quando já inteirasse pelo menos duzentas páginas.

O tal livro levaria o título Assombros, pelo que estava ameaçado no caderno espiral onde Fernando escondia aqueles rascunhos que nunca dava por concluídos. E não era porque a inspiração não o abordasse. Era por sentir falta do concerto das palavras, do encanto das metáforas, da mágica do ritmo, do fermento da originalidade. Escritor de verdade é aquele que é reconhecido na singularidade de cada frase que escreve e de cada verso que compõe, professava.

Estivera, no passado, sempre subserviente a figurinos intolerantes que se apegavam a métricas e rimas. Modelos que aprendera a reprovar como envelhecidos, que mais não faziam do que algemar o artista. Foi preciso um bom tempo para que arrebentasse tais cadeias. E ao fazê-lo veio a hora de repassar o que ficou de anos e anos de noites de insônia, revendo mil vezes e que haveria de rever mil veres mais. Carecia de reconstruir seus versos, abençoado pela liberdade de sonhar e de dizer.

Mesmo assim, quando se botava para escrever, de vez em quando tinha as suas recaídas e se surpreendia novamente escravo da versificação e das rimas. Ele sabia disso tudo.

E era da soma de tais minúcias que lhe vinham o desagrado pelo que já tinha rascunhado, a resistência a dar os seus poemas por arrematados, a tentação que o aconselhava a dar sumiço naqueles escritos. Não encontrava neles nada de original na forma e no miolo. Ele mesmo os condenava como inservíveis.

Estou mais para escriba do que para escritor, desmerecia-se. E maltratava a paciência de Leonor: O escritor e o escriba não se confundem: o escritor cria e em criando surpreende e encanta; o escriba escreve e em escrevendo simplesmente diz.

 

 

Naquela tarde chuvosa de julho Fernando fuçava nas estantes da Biblioteca Pública. E eis que lá estava um livro que contava a história da Inquisição em Portugal. Os relatos vinham desde Évora e seguiam por Lisboa, Coimbra, Porto, Lamego e assim por diante. Pelo visto, jamais alguém o folheara.

Só de olhar já se advertiu de que estavam reacesos os sentimentos despertados pelas narrações que passara a infância e a adolescência a escutar do pai. Eletrizaram-se os neurônios. Levou o livro para casa. Haveria de lê-lo com mais vagar.

Na mesma noite, já bem adiantado na leitura, deu de frente com a fac-simile de uma proclamação do Santo Ofício. Vinha da parte do Presbítero Cardeal Nuno da

Cunha. Anunciava que, no dia 2 de setembro de 1733, um Auto de Fé sucederia na Igreja Convento de São Domingos, em Lisboa.

Entre os ditos relaxados em carne, o que queria dizer endereçados à fogueira, estava um tal de Fernando Henriques Alvres, que poderia ser Álvares. Lá se tinha escrito que era um lavrador de mandioca, natural da Vila de Moura, Arcebispado de Évora, e morador do Rio São Francisco, termo da vila do Penedo, Bispado de Pernambuco. E fora condenado, entre outros crimes de opinião por ser convicto, simulado e impenitente.

Os tiranos, seja qual for a flâmula que ostentem se arremedam. Detestam cada um que ouse pensar, escolher e opinar. O que pode muito bem ser explicado: déspota que tolera adversários alimenta víboras peçonhentas que, mais cedo ou mais tarde, poderão picá-lo. Daí começarem por calar enquanto não matam os contrários e já se armam para expurgar os aliados que ameacem fazer-lhes sombra.

Fernando leu a proclamação. Releu uma vez, outra e outra mais. Pronto… Ali estava a evidência que por tanto tempo almejou encontrar. Se o documento era falso ou não era, se era verdade ou fake news… dava no mesmo. Ainda que fosse mentira era a verdade que lhe convinha. Sempre acreditou que existem tantas verdades e mentiras quantas consciências as aceitem, rejeitem ou simplesmente adulterem segundo os seus caprichos, interesses e prejulgamentos.

Sua euforia não vinha da descoberta de uma evidência que validava uma hipótese. Sempre estivera seguro de que não se tratava de uma mera suposição. Ele, sem qualquer dúvida, já vivera e morrera um monte de vezes. E numa delas teria sido um cristão-novo cremado vivo por ordem do Santo Ofício. A obsessão não procura a verdade nem reconhece a mentira… simplesmente as projeta e fabrica.

Vivera, sim, na pele de Fernando Henriques Álvres ou Álvares, que era cristão novo, nascido e crescido na Vila de Moura, nas cercanias de Évora. Viera para o Brasil e fora lavrador de mandioca em terras do Penedo do Rio São Francisco. Traído e entregue ao Santo Ofício, talvez em troca de um punhado de Reais, foi acorrentado e levado a Lisboa, onde, depois de ser flagelado e simularem julgá-lo, terminou os seus dias incinerado vivo num ato de piedade cristã.

E a prova disso estava em Fernando trazer, no corpo de hoje em dia, a amaldiçoada memória das labaredas redentoras: além da alergia a fumaça, as vermelhidões e os formigamentos que o vinham atormentando pela vida inteira.

 

 

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About Carlos Mero

CARLOS MÉRO nasceu em Penedo (1949). Membro da Academia Alagoana de Letras, do IHGAL e da Confraria Queirosiana (PORT.). Já integrou o Comité Scientifique da Revue REFLEXOS - Université Toulouse Jean Jaurès – FR.). Principais publicações: O Beco das Sete Facadas e outras estórias alucinadas (Contos). São Paulo: Marco Zero. 2005 - A lua de fel do casal Valhamor (Conto). Revue L’Ordinaire Latino-Americain, nº 212/2010, Université de Toulouse II – Le Mirail. - O amargo regresso da desesperança. Revue Caravelle nº 96/2011 - Université de Toulouse II – Le Mirail - Travessias (Contos - coautora: Cristina Duarte-Simões). Maceió: Viva. 2013 - Graciliano Ramos: Um monde de peines. (Depoimento). Lille (Fr): The BookEdition. 2015 - A deserção de Maíra (Novela), in Inventando Maíra S. Paulo: Scortecci. 2016 - O chocalho da cascavel (Contos). S. Paulo: Scortecci. 2016 - Um gosto de mulher (Poesia). S. Paulo: Scortecci. 2018 (2ª edição) - Dias assombrados em Roma (Memórias). S. Paulo: Scortecci. 2ª ed. 2020 - Contos covidianos. S. Paulo: Scortecci. 1ª e 2ª eds. 2021); Os dois melros (Conto). Rev. de Portugal nº 18/2021; Eça de Queirós e Graciliano Ramos: Diálogo criativo (Palestra: Vila Nova de Gaia - 15.03.2022). Rev. de Portugal nº 19/2022.

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