OS ÓRFÃOS DE ROMA
   17 de julho de 2023   │     1:37  │  0

AS RAZÕES DA QUEDA DE ROMA

Se há uma lacuna na história, algo que não ficou bem contado e que até hoje ninguém escreveu especificamente, é sobre o período de transição do mundo antigo ao medieval. E não é, simplesmente, uma questão de se arrematar informações sobre o período de decadência do Império Romano, que coincide com o início da Alta Idade Média. É muito mais que isto. Esta resposta estaria guardada na consciência do homem desse período, na sua visão e compreensão do que estava acontecendo com a poderosa Roma que ele conhecia.

Diz o pernambucano Oliveira Lima, autor de “História da Civilização”, publicado em 1919 pela Editora Melhoramentos, pg. 109, que Roma era: “A mais sólida das civilizações antigas, aquela que descende diretamente a civilização moderna…” E com certeza este pensamento não era diferente para um cidadão romano, fosse este, um senador, um agricultor ou até mesmo um simples escravo. O poder de Roma, não vinha da força de seus exércitos, como muitas vezes julgamos. Ao contrário, era o seu povo, a sua gente, aquela humilde plêiade de trabalhadores, artesãos, camponeses, artistas, engenheiros, comerciantes e tantos outros que moviam a sua economia. Marvin Perry, no seu livro Civilização Ocidental, da Martins Fontes, publicado em 1999, diz, na página 117 que: “A deterioração do exército foi uma das principais causas da crise do século III”. Mas é preciso ir mais fundo na questão, para entender que a origem da indisciplina e da desordem das forças militares romanas, são, sem dúvida alguma, de ordem econômica. Basta observar que este império não cresceu apenas geograficamente, tomando cidades e se beneficiando de sua infra-estrutura. Sua expansão foi também semeada de construções, obras públicas, estradas, pontes. Mas era na capacidade de manter o império auto-suficiente, com um comércio bem distribuído, com uma indústria e uma agricultura estabilizada que gerava a riqueza de sua população. Famílias inteiras, empregados e escravos conseguiam manter uma propriedade rural, produzindo uma dúzia de produtos vitais, desde a preparação de conservas, até tecidos de lã e linho alvejado. Produtos, com compradores certos atravessavam as boas estradas, construídas pelo império e que serviam ao escoamento dessas mercadorias para as principais cidades, guardadas dos saqueadores pela sua milícia. Com uma moeda valorizada a riqueza do campesinato, assim como da indústria e do comércio em geral, fazia nascer uma classe, que mesmo considerada plebéia, concentrava mais riqueza que aos membros do Senado Romano. Esta autonomia econômica, baseada no sistema do Laissez-faire, permitia que a população estivesse engajada na distribuição de emprego e renda, sem a interferência do estado. Com todos os desníveis sociais, a concentração da riqueza a uma minoria privilegiada de políticos e altos funcionários, não chegava a ser um escândalo. Durante muito tempo, não foi a política do pão e circo, o principal objetivo do governo. Grandes investimentos foram feitos para dar a cidade de Roma uma infra-estrutura a altura de seu pendor.

Mas as cidades não produziam, viviam desta exploração das atividades agrícolas e industriais mantidas nos seus em tornos. Ganhou-se dinheiro até quando a máquina estatal funcionou adequadamente. Quando a sobrecarga a tributária começou a ser usada para cobrir os gastos públicos e o governo ditou leis para controlar as atividades econômicas, não havia mais operários suficientes para manter o mesmo nível de produção. A população havia sido dizimada em mais de 30%, tanto pela guerra, como pelas suas conseqüências – as epidemias. O empobrecimento do populacho ao nível de miséria torna Roma sua inimiga mortal. A lealdade se esvai. Principalmente, do soldado romano, recrutado das províncias mais pobres e que fatalmente aderiam também aos ataques contra a riqueza. Aproveitando-se disso as tribos germânicas, começam a atravessar as fronteiras para saquear e destruir. Coisa que o próprio cidadão romano, reduzido à miséria, também já estava fazendo, sobretudo, nas cidades. Para conseguir suprimentos e fundos para pagamento aos militares, o governo confiscou bens e impôs trabalho forçado, além de obrigar a hereditariedade profissional na indústria familiar e na agricultura. A urbanidade romana começava a ser destruída pelas invasões, saques, guerras civis e a fome. E isto tudo, contribuiu sobremaneira, para a desvalorização da moeda e o declínio da economia. Nada mais havia restado da “Pax Romana”, de Otávio Augusto, nem da “Plenitude dos Tempos” a que se referia a carta de São Paulo aos Gálatas, capítulo 4, versículo 4. Mas, quando aconteceu tudo isso? Quem estava lá?

Quem deixou registro contando todo este processo gradual de decadência e de seus efeitos sobre a população? Que a morte de Marco Aurélio, ocorrida em 180 d.C. é o início de tudo é verdade, mas Roma continuou de pé, se refazendo a cada dia com um novo monumento, gastando seus recursos na ostentação. Afinal, logo após a construção das Muralhas Aurelianas, entre 271-275 d.C, estava o império a construir as Termas de Diocleciano em 303 d.C. e mais tarde as de Constantino, em 326 d.C. Um outro exemplo disso são os dois arcos de Constantino, o primeiro e mais conhecido, que data de 316 d.C., o segundo, o arco quadrifronte, dito de Janus, provavelmente dedicado a Constantino, erigido no início do século IV d.C. Possivelmente, o investimento para homenagear o imperador dos cristãos, feriu o orçamento das forças armadas, haja vista, que logo em seguida, em 14 de agosto de 410, Alarico, o rei dos visigodos, invade e saqueia Roma. E, quem nos conta toda esta história com detalhes jornalísticos é Santo Agostinho, em seu livro “A Cidade de Deus”, ed. Universitária São Francisco, p. 70, volume I. “ (…) Com efeito, Roma, fundada e engrandecida pela coragem dos ancestrais, haviam-na feito, na grandeza, mais horrenda que na queda. Não passa agora de ruína de madeira e pedra, mas na vida deles a beleza moral é que se desmoronou; o coração ardia-lhes de paixões mais funestas que as chamas que lhes devoram os tetos. Assim terminou o livro primeiro; quero, agora, lembrar todos os males que Roma sofreu, seja no interior, seja nas províncias submetidas a seu império, males que infalivelmente atribuíram à religião cristã, se na devida ocasião a liberdade da palavra evangélica houvesse erguido poderoso protesto contra seus enganadores e falsos deuses.” O cristianismo havia sido acusado, por pagãos e cristãos pela queda de Roma. A decisão de Agostinho de escrever “De Civitate Dei” é abordada por ele mesmo, no início da página 70: “ No livro precedente abordei esta obra a respeito da Santa Cidade, que me proponho erguer com os auxílios de Deus; pensei que, preliminarmente, devia responder aos ímpios que à religião cristã, porque lhes proíbe o abominável culto aos demônios, atribuem os flagelos da guerra que devastam o mundo, em contrário, deveriam dar graças ao Cristo, pela inaudita clemência dos bárbaros que, exclusivamente por amor a seu nome, para refúgio da liberdade dos vencidos abre os mais santos, os mais amplos asilos e em vários respeita a profissão do cristianismo, sincero ou usurpado pelo medo, ao extremo de considerar ilícito exercer-se neles o direito de guerra. (…) E refuta o respeito dos invasores diante dos templos cristãos. Eis o texto da página 28, volume I: “Atestam-no as capelas dos mártires e as basílicas dos apóstolos, que em plena desolação de Roma abriram o seio a quantos cristãos ou gentios, nele buscavam refúgio. Até o sagrado limiar o furioso inimigo banhava-se em sangue, mas nessa barreira a raiva assassina expirava. Para esses lugares alguns vencedores, tocados de compaixão levavam aqueles que, mesmo fora de tais recintos haviam poupado, para subtraí-los a mãos mais ferozes, eles próprios também cruéis e impiedosos pouco mais longe, desarmados quando se aproximavam dos lugares em que lhes era interdito o que o direito da guerra permitira alhures. Detinham-se nos santuários, a ferocidade que faz vítimas, embotava-se a cupidez que quer cativos. (,,,) A obra de Agostinho ressalta as vicissitudes do Império Romano, como causa maior para o desastre. E encerra seu conceito numa frase extremamente afiada: “ Sem a prática da justiça, que é o Estado, senão um bando de ladrões?” P.153, volume I.

 

 

A SEMENTE DO FEUDALISMO

O III século d.C. é marcado pelo crescimento das concentrações rurais – latifundia, geralmente, grandes propriedades que passam a ser fortificadas. Estas indústrias agrícolas, que produziam, praticamente tudo o que as cidades consumiam, se voltaram exclusivamente aos mercados locais. E isto concorreu para o empobrecimento dos aglomerados urbanos. Com isso, artesãos e pequenos agricultores passaram a buscar proteção junto aos grandes proprietários que trocaram os escravos, já bastante escassos, pela mão de obra dos coloni. Estes, passaram a trabalhar, recebendo um percentual da produção. Iniciava o regime servil onde o trabalho era a paga pela proteção e a sobrevivência. O crescimento do latifundia, coincidiu com o declínio das cidades, a esta altura, saqueadas, depredadas e expostas aos criminosos. Estava nascendo o sistema feudal. Nascia também o primeiro raio de sol da idade média.
Não é difícil imaginar, o homem desta época em meio à convulsão causada pelo declínio econômico de Roma, pelas invasões e guerras, pela miséria, doenças e principalmente, pela falta da ordem e da justiça. A perda da fé no Estado, a falta de confiança na administração pública, tudo isto, somado a desordem moral, política e econômica reduziu as crenças pagãs romanas ao lodo. Roma patrocinava a sua religião, cujos oráculos, naquele momento, pareciam inócuos. É neste cenário que o cristianismo, surge num alento ao sofrimento Primeiro, pela solidariedade ou a fraternidade, criada entre seus adeptos, para acudirem-se mutuamente. Depois, o fascínio de uma história viva contada pelos seguidores mais íntimos, pessoas que haviam conhecido os primeiros mártires da Igreja, como Policarpo, bispo de Esmirna. Ou mesmo, aqueles que haviam passado pela cruel perseguição de Décio, que cingido da púrpura imperial resolveu devolver a antiga glória de Roma, conforme nos conta o historiador Justo L. Gonzales, em seu livro “A Era dos Mártires”, ed. Vida nova, pg. 141. Oportuno lembrar que esta Roma do terceiro século era outra, reconstruída após o incêndio de 64 d.C. na época de Nero, quando os Cristãos foram acusados como autores da tragédia. Tácito, em seus “Anais”, nos descreve este acontecimento com detalhes que nos permite fazer um juízo de valor a respeito desta época de perseguição. O texto inicia a partir do capítulo 33 do décimo primeiro livro. Inicia contando sobre as suas extravagantes viagens pela península, até que resolve ir as províncias do oriente. Mas arrependido diz que o povo se sentia triste com a sua ausência. É quando resolve fazer inúmeras festas em praça pública com a presença da corte e a participação de toda Roma. Uma destas festas, o autor relata no capítulo 37, foi dedicada a Tigelino, quando reconhece que o Imperador só veio superar-se em depravações, quando resolveu exercer a função de esposa de Pitágoras, um jovem de sua comitiva, onde até mesmo o leito conjugal ficou a mercê de uma platéia de convivas. Foi nesta ocasião que ocorreu a tragédia. Eis os fatos contados por Tácito, no capítulo 38: “ Seguiu-se logo um grande desastre, o qual se foi casual ou obra da malícia de Nero ainda hoje não é fato certo porque uma e outra coisa lemos nas histórias. Foi um fogo o mais horroroso e o mais devastador de todos quantos nos tempos passados se tinham visto em Roma. O incêndio começou na parte do Circo, que está contígua aos montes Palatino e Célio e dando nas lojas aonda encontrou bastante matérias Combustíveis(…)” Para desviar as suspeitas sobre a sua autoria do incêndio, Nero “(…) procurou achar culpados, e castigou com as penas mais horrorosas a certos homens que, já dantes odiados por seus crimes, o vulgo chamava cristãos. O autor deste seu nome foi Cristo, que no governo de Tibério foi condenado ao último suplício pelo procurador Pôncio Pilatos A sua perniciosa superstição, que até ali tinha estado reprimida, já tornava de novo a grassar não só por toda a Judéia, origem deste mal, mas até dentro de Roma, aonde todas as atrocidades do universo, e tudo quanto há de mais vergonhoso vem enfim acumular-se, e sempre acham acolhimento.” – capítulo 54, livro 15. Passados mais de dois séculos destes acontecimentos, Roma voltava ao mesmo caos urbano, embora pousada sobre um baluarte de aparente harmonia.
Por outro lado, o paganismo, ou melhor, a religião oficial do Estado, esta, não se preocupava com a vida futura e sim com ritos secretos, exóticos ao gosto da bestialidade imperial. Diante da singeleza do cristianismo, estas crenças pagãs, tornavam-se cada vez mais amoral aos novos padrões do entendimento humano. Até então, era comum o culto a Dionysio que simbolizava o poder reprodutor. Razão pela qual, ainda se pode ver no Museu Arqueológico de Nápoles, os mesmos falos, que a artesania popular reproduz hoje, para vender a turistas, em frente à Vila dos Mistérios, na antiga Pompéia. Mas eram, sobretudo, as religiões orientais que faziam sucesso na urbe. No culto a Cybele, havia padres cantores, bailarinos que dançavam ao som de címbalos, flautas e tambores. Tudo isso era muito difícil de ser mudado, mais ainda, pelo temor e o fanatismo. O próprio Agostinho de Hipona, conta em suas “Confissões”, pg. 90 – Coleção “Os Pensadores”, que sua mãe Santa Mônica, embora convertida ao cristianismo, durante muito tempo, ainda participou da festa fúnebre pagã, que ocorria entre 13 a 21 de fevereiro, quando levava alimentos e bebidas ao cemitério. Deixou o costume, apenas, quando foi obrigada pelo Bispo de Mediolanum – Santo Ambrósio. Da mesma forma, não podemos esquecer que o dia 25 de dezembro é, na verdade, o dia, considerado pela religião persa de Mithra – o deus do sol, como o do nascimento do sol invencível – Mithra.
Mas foi o enfraquecimento do poder político de Roma, o fortalecimento dos latifundia que contribuíram para criar as lideranças necessárias para o surgimento de uma nova casta de aristocratas rurais. É só entender, o leitor, que o primeiro rei é sempre aclamado, mesmo por aqueles a quem venceu. É a sua aceitação diante da comuna que o faz rei. A partir de então o poder passa a ser herdado através da primogenitura. A crença de que o poder era dado por Deus, concorria para que o soberano fosse ungido pela Igreja, como uma vez foi o Rei Davi. Estes reis, nesta época eram apenas os “Senhores” donos das terras. Como diz Thomas Hobbes – Leviatã – edições Martin Claret, pg. 98: “Torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra. Uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. A guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida.” Isto quer dizer que o cidadão romano viu-se órfão de sua pátria, abandonado, sem a proteção e a segurança que o Estado lhe devia, conforme volta a afirmar Hobbes na pg. 125: “Constituiu-se insuficiente para garantir aquela segurança que os homens desejariam que durasse todo o tempo de suas vidas, ou seja, que eles fossem governados e dirigidos por um critério único(…)” Se o feudalismo surgiu desta busca de proteção o homem medieval cerceou a sua liberdade a ponto de tornar-se um servo. Assim como os senhores proprietários cresceram em importância poderio que se tornaram reis em suas próprias terras mantendo sua soberania sobre seus servos. Lembrando, inclusive, que o regime escravista nunca foi abolido por Roma. O escravo, simplesmente, tornou-se dispendioso. Isto não alterou em nada a condição de miséria e pobreza a que o império romano havia reduzido o homem, pobre, miserável, mesmo assim, cidadão romano. O Senhor feudal apenas o agregou a seus domínios e o submeteu ao seu despotismo.
Os órfãos de Roma não herdaram mais que o sincretismo religioso e as superstições do paganismo. O helenismo, na sua essência filosófica, na sua cultura e, sobretudo no próprio idioma em nada lhes servia. Se não falavam sequer a sua língua vernácula, o latim, como saber de filosofia ou entender o que se passava com as artes e a cultura? Esta população analfabeta, inculta e pobre se alastrava em guetos ou perambulava em busca de alimento, em cidades destruídas ou seguia a alhures pelas estradas abandonadas.

 

OS CAMINHOS DA SERVIDÃO

A exclusão social, no terceiro século da era cristã, trouxe a primeira leva de miseráveis e os conduziu a uma situação bem pior do que a de um escravo. Sem trabalho nem propriedade, não eram senhores nem de si mesmos. E é bom lembrar que o Império Romano, nunca foi de incentivar as obras assistenciais, principalmente na urbe, para evitar a migração às cidades. Portanto, a falta de uma ocupação era encarada como a égide da preguiça. Não podemos negar que o ocidente hodierno herdou a mesma cultura de ojeriza a pobreza, considerando-a um estorvo à civilização. A razão é que a “pobreza” parece ser sinônimo de “incompetência para gerir a riqueza”. Era assim que os romanos pensavam. Era assim que John Locke, no século XVII, continuou convicto. E é o que ainda hoje acreditamos.
O Império Romano trapaceou o pobre na essência dos seus direitos. E um exemplo disse é que a sigla S.P.Q.R. ou Sanatus Populusque Romanus, nunca significou realmente “O Senado e o Povo Romano”. Diz Breno Silveira, ao prefaciar os “Anais” de Tácito da Coleção Jackson, volume XXV, pg. viii, que: “Na atualidade povo é o que se pode especificar como sendo, o corpo civil de uma nação. Nos tempos romanos, povo era o que hoje se qualifica como sendo exército. O corpo civil na Roma Imperial era o Senado, para onde iam os senhores territoriais, os descendentes das velhas aristocracias, famílias estas que tinham direitos sagrados e que podiam deixar herdeiros.(…) Assim, a expressão: o senado e o Povo romano, deve ser traduzida para o corpo civil, aristocrático e o exército romano.” O que fica claro que o povo, propriamente dito, não mandava em nada. Portanto, o estado de pobreza sempre foi, soberbamente, desprezado pela sociedade. Afinal, Roma a fabulosa Roma, apesar de toda a sua opulência, convivia com esta vizinhança, sem educação, suja e fedorenta, cujos ruídos e algazarra perturbavam a ordem, “(…)fosse nos banhos públicos ou com os gritos de seus vendedores, nas calçadas”. É o que nos relata Andrea Giardina, organizador da obra: “O Homem Romano”, edição de 1992 da Editora Presença – Lisboa, p. 223. Uma outra prova do abismo existente entre as classes sociais, podemos ver a legislação vigente em 300 d.C. de acordo com as observações de Jayme de Altavila no livro Origem dos Direitos dos Povos, editora Ícone, p.87. Eis alguns tópicos: “II – Cabe aos nobres o governo das coisas sagradas e o exercício da magistratura. III – A plebe deve cuidar dos campos e da lavoura. IV – O povo deve acreditar nos magistrados. V – As leis são imparciais.” Tudo isto ratifica a disposição de Roma em garantir privilégios, através de uma legislação, que também estabelecia, claramente, sua intenção de manter a “plebe” fora dos domínios da urbe, cuidando “dos campos e da lavoura”. O que fica bem claro que colonos, agricultores ou até pequenos proprietários eram considerados como “plebe”. Para esclarecer o leitor, é qualificada como plebe a camada mais baixa da sociedade. Portanto, há de se entender que a lei quando especificava “povo” era abrangente a toda a população obrigada a “acreditar nos magistrados”. Que raciocínio poderíamos fazer diante desta sentença? Seria apenas a “plebe” (aquela que deveria cuidar do campo) mas, era parte do “povo” romano, que “deveria acreditar nos magistrados”? Ou, de acordo com as observações de Breno Silveira, este “povo” era apenas o exército romano? Será que não tem mais lógica? Roma não estava preocupada com a plebe, a não ser para colocá-la no seu devido lugar: o campo e não a cidade. Sobretudo, por uma razão muito simples: Toda a infra-estrutura de Roma estava voltada a atender aos ricos e não a “plebe”. O domus de um senador romano possuía banho próprio e latrina, com esgoto para a “cloaca máxima”, enquanto a ralé fazia suas necessidades pagando ao serviço público ou atrás da moita. Finalmente, a última sentença: “As leis são imparciais”. Só tem lógica se esta “imparcialidade” a que se refere, fosse tratada entre iguais. Caso contrário, não haveria necessidade de legitimar a exclusão social. O que corrobora ainda mais para a idéia de que a famosa frase: “O Senado e o Povo Romano” é um engodo.
Se a Igreja Cristã havia sobrevivido ao terceiro século e já dispunha de uma certa organização hierárquica, isto aconteceu, simplesmente, porque o Império Romano estava ocupado demais, tangendo os vândalos e os bárbaros de suas fronteiras. Ocupado demais, para ver que aquela crença da ralé que se espalhava, através dos canteiros de miséria, que Roma havia semeado. Mas aos poucos o cristianismo vai substituindo o Estado, disfarçado e quase anônimo mesmo, disputando com o judaísmo, a ferocidade do governo. Se a perseguição maciça havia cessado, o flagrante e a delação, ainda eram levados a sério. A pena era geralmente, a de abjurar o seu credo e adorar um deus pagão. E isto valia até para os soldados, muitos já convertidos. Alguns jovens evitavam o serviço militar, pelas suas cerimônias religiosas obrigatórias, onde o cristão disfarçado era sempre reconhecido.
Para se ter uma idéia do que se passava, pelos idos de 250 d.C. em relação à perseguição aos cristãos no tempo de Décio(249-251), há o testemunho de um Libellus – (Certificado de Sacrifício) descoberto em 1893, em Fayon, no Egito, segundo Henry Bettenson, organizador do livro “Documentos da Igreja Cristã”, ed. Aste – 1967, p.41-42. Eis o texto: AOS COMISSIONADOS PREPOSTOS PARA OS SACRIFÍCIOS NA ALDEIA ALEXANDRONESO, DA PARTE DE AURÉLIO DIÓGENES, FILHO DE SÁTABO, NASCIDO EM ALEXANDRONESO, DE 72 ANOS DE IDADE, MARCA PARTICULAR: UMA CICATRIZ NA SOBRANCELHA DIREITA. – Sempre sacrifiquei aos deuses, e agora na vossa presença, de conformidade com os termos do edito, acabo de oferecer sacrifícios e libações e de provar carnes sacrificadas. Solicito de Vossa Senhoria outorgar-me um certificado para o devido efeito. Saudações. – SUPLICA APRESENTADA POR MIM, AURÉLIO DIÓGENES. EU CERTIFICO ter PRESENCIADO O SACRIFÍCIO DE AURÉLIO SIRO. – Datado neste primeiro ano do Imperador César Gaio Méssio Quinto Trajano Décio, Pio, Félix, Augusto. (26 de junho de 250) Como já falamos anteriormente, Décio queria devolver a Roma toda a sua glória. E começava por tornar obrigatório, através de um Edito, o culto aos deuses romanos, relegados ao um plano secundário pela população e principalmente por membros da seita cristã. Este certificado, muitas vezes era obtido mediante suborno de cristãos, através de amigos pagãos.
Após 250, no reinado de Valeriano(253-260), vamos ver que havia uma preocupação de Roma com membros da corte, como senadores, cavaleiros e fidalgos romanos que já aderiam ao cristianismo. E isto fez com que o Imperador enviasse o seguinte “Rescrito” ao Senado: “(…) ordeno que sejam castigados imediatamente os bispos, os sacerdotes e diáconos; os senadores, cavaleiros e fidalgos romanos que devem ser privados de suas propriedades e degradados; e, se persistirem na fé cristã, decapitados; as matronas, privadas de seus bens e desterradas. Qualquer membro da casa de César que confessou ou ainda confessa ser cristão, perderá seus bens e será entregue preso para trabalhos forçados nas terras do Imperador.”
A patente ruína da urbanidade religiosa romana fica evidente em dois documentos do tempo de Maximino datados de 308, da mesma coleção de Henry Bettenson. O primeiro deles, o Imperador ordena a reconstrução dos templos arruinados e obriga a “oblação de sacrifícios e libações exigíveis de todos sem exceção, homens, mulheres, escravos, meninos e até crianças de colo(…)” O segundo documento ordena, não só a reconstrução dos templos, “rapidamente”, como a “restauração dos bosques sagrados, nomeando ainda sacerdotes dos deuses para cada cidade e aldeia, designando-lhes, cada província, um sumo-sacerdote escolhido entre oficiais particularmente devotados a seu serviço, e assistido por um corpo de soldados e de uma guarda pessoal(…)” A decadência de Roma estava implícita, principalmente, no aspecto religioso, onde a pessoa do Imperador, até então, confundia-se com a de um deus. Razão pela qual, esta desagregação não poderia estar relacionada, apenas ao empobrecimento da população romana. A prova de fidelidade ao imperador, passava, necessariamente pela mesma fidelidade aos deuses. O que dá a entender que a elite também havia se afastado das suas obrigações religiosas, permitindo que os templos ficassem abandonados, a ponto de ser necessária a ordem para reconstrução e nomeação do clero, “assistido por um corpo de soldados e de uma guarda pessoal”. Décio queria ressuscitar o paganismo, como se este representasse a força necessária para soerguer Roma. Uma prova cabal de que reverenciando os deuses, mantinha-se a fidelidade ao imperador.

 

TREZENTOS ANOS DE CAOS

Falar sobre a trajetória do homem romano após o Século III não é uma tarefa fácil. Não estamos lidando com uma seqüência histórica, mas com um recorte de cerca de 300 anos de informações dispersas, onde tudo o mais só passa a existir a partir do ano 476, data da queda do Império Romano no ocidente. Esta ausência de informações seqüenciais e paralelas acompanha geograficamente este homem, como se a sua existência dependesse da existência do império. E isto é tão forte que a chamada Idade Média, foi assim compreendida e levada a academia, como iniciada a partir daquela data. Com isso, ignorou-se, ou, pelo menos não se deu importância ao processo e a formação desta nova fase, quando acaba o vínculo com Roma. E, praticamente, não há questionamento sobre esta sistemática, que prescreve mil anos, até o início da Idade Moderna em 1453, assinalando a queda de Constantinopla. Parece lógico e muito simples, do ponto de vista da relação com a antigüidade clássica, onde Roma era o baluarte referencial. Mas, não sobre o aspecto antropológico. Não é justo que a história crie parâmetros em cima de dois únicos fatos, sem considerar que após a morte de Marco Aurélio em 180 d.C. iniciou o processo de decadência. Foi ali o fim da “Pax Romana” de Otavio Augusto, iniciada em 27 a.C. São, portanto, 296 anos de transformação social que não pode passar incólume na história. Mesmo sem um rótulo próprio, este período pré-medievo é, muitas vezes chamado de “paleocristão”. Razão pela qual, é necessário rever os decretos imperiais sobre a igreja cristã primitiva para se delinear o cenário da época. Afinal de contas, estes “órfãos de Roma”, como temos denominado desde o início, passam por um processo de perda de identidade civil, cultural e religiosa.
O avanço do cristianismo, mesmo passando pelos bastiões do Estado ainda disputava, disfarçadamente, sua posição com o paganismo que há muito havia perdido sua popularidade. Após a perseguição de Maximino, veio o Edito de Tolerância de Constantino, em 311, com uma redação ainda tímida, propunha, pela primeira vez a convivência mútua, permitindo que o cristianismo pudesse coexistir com o paganismo. Eis parte do texto, extraído da página 44, do livro “Documentos da Igreja Cristã” de Henry Bettenson: “(…)Sendo, porém que muitos persistem em suas opiniões e evidenciando-se que, hoje, nem referenciam os deuses, nem veneram seu próprio deus, nós usando da nossa habitual clemência em perdoar a todos, temos por bem indultar a esses homens, outorgando-lhes o direito de existir novamente e de reconstruir seus templos, com a ressalva de que não ofendam a tranqüilidade pública”. A fase seguinte foi o Edito de Milão, assinado em 313. Este documento, realmente teve um grande efeito, pois permitiu que fossem restituídas todas as propriedades da Igreja. No mesmo ano, e pela primeira vez Roma dá dinheiro aos cristãos. Esta concessão é feita a algumas igrejas na África. A partir de 319 Roma, através, ainda de Constantino, condena a prática de adivinhação e outras seitas. O texto é explicito e diz: “Nenhum arúspice aproximar-se-á do limiar de seu vizinho inclusive com outro propósito(do que adivinhar). Desterre-se a amizade com gente dessa profissão, sem excetuar amizades já velhas. O arúspice que violar o domicílio de seu vizinho será queimado; e qualquer pessoa que o convidar, seja por persuasão ou pago de dinheiro, será privada de seus bens e banida a alguma ilha(…)” Ora, os arúspices eram funcionários públicos de Roma, consagrados a tarefa de predizer o futuro através das entranhas da vítima. Acreditamos, que a esta altura dos acontecimentos, muitos deles, tentavam sobreviver de seu ofício, fora dos templos pagãos, fechados por Constantino. Como a população não convertida ainda era grande, o paganismo representava a religião secular do império. Se entre os próprios cristãos já havia cismas, imagine entre a população laica. O mais interessante em tudo isso é que no final desta mensagem de Constantino há uma ordem marcante: “Quem delatar tais contravenções não será considerado como delator, mas será merecedor de recompensa. DADO EM ROMA A PRIMEIRO DE FEVEREIRO, QUINTO ANO DO CONSULADO DE CONSTANTINO AUGUSTO E DE LICÍNIO CESAR.”
A tarefa de ver o período intermediário, entre o século III e o século V, através das convulsões sociais e religiosas das camadas mais pobres da população romana, exige um desenho claro do cenário urbano da península itálica. A decadência do império, não trouxe a Roma apenas a ruína de sua urbe, mas uma verdadeira massa populacional de outras origens, fazendo com que a cidade se tornasse inabitável. Quem tinha recursos, mudava-se para alguma propriedade rural e não participava da corte. Will Durant, na sua obra “História da Civilização”, volume IV, p.27, descreve a cidade até com certa crueldade: “A maioria dos ricos vivia em suas propriedades campestres, evitando dessa maneira o tumulto e a canalha das cidades. Todavia, a maior parte da riqueza da Itália era canalizada para Roma. A grande cidade já não era mais capital, raramente via um imperador, porém continuava a ser o centro social e intelectual do Ocidente. Era lá que se encontrava a nata da aristocracia italiana, não uma casta como antigamente, porém recrutada periodicamente pelos imperadores no círculo dos proprietários de terras. Conquanto o Senado tivesse perdido o prestígio e muito de sua força, os senadores levavam uma vida cheia de esplendores e ostentação.(…)” Não é de se estranhar que a Roma do Século IV, segundo Durant, tivesse: (…) 175 dias feriados durante o ano; 10 se destinavam às lutas dos gladiadores, 64 aos de trabalho de circo, e os restantes aos espetáculos teatrais. Esta era a herança da velha Roma, o que a princípio nos faz acreditar na política de pão e circo aos pobres. C.R. Whittaker, no capítulo X do livro “O Homem Romano”, organizado por Andrea Giardina, nos dá outra idéia. Apesar de um Imperador acreditar que podia conquistar o seu povo através da distribuição de trigo e dos espetáculos do circo e do anfiteatro, havia sempre muito mais gente na fila da comida que na fila da diversão. Numa cidade de um milhão a um milhão e meio de habitantes, cabiam 250 mil no Circo Máximo e 50 mil no Anfiteatro Flávio (Coliseu). Ora, há de se considerar conforme o texto que: (…) uma parte considerável dos verdadeiros pobres não assistia a nenhum dos espetaculares obséquios que, segundo se dizia, corrompia a plebe romana. É evidente que os ricos também se apinhavam nos espetáculos e não desdenhavam de fazer fila para as distribuições públicas.” A realidade, é que a cidade continuava a viver, mesmo que Roma fosse apenas um fantasma dos tempos áureos.
Se o cristianismo conseguiu mudar o comportamento da população, segundo um sacerdote de Marselha, do século V, diz Will Durant, que nem os cristãos estavam isentos da imoralidade coletiva, do adultério e da embriaguez. (…) são vícios da moda, a virtude e a temperança constituem alvo de gracejos, o nome de Cristo, tornou-se uma expressão profana entre os que o chamam de Deus.” Pudera, no fim do século IV ainda existiam no Império, 700 templos pagãos. Afinal, o Imperador Juliano, deu uma reviravolta em 362 e ordenou a reconstrução e a abertura dos templos fechados por Constantino. Na sua aversão pelo cristianismo, apelidou seus seguidores de galileus. Eis o seu decreto: “Imaginava que os bispos galileus teriam comigo maiores obrigações do que com os meus predecessores. Pois, no governo deles muitos foram banidos, perseguidos e encarcerados e, dos chamados hereges, muitos foram executados(…) Todas estas coisas foram invertidas em meu governo: os desterrados têm permissão para regressar; os bens confiscados retornam a seus proprietários.(…) Que o cristão desnorteado não perturbe a quem adora os deuses como convém e conforme foi legado pela remotíssima antigüidade; que os adoradores dos deuses não destruam nem pilhem a casa dos que a ignorância, mais do que a livre escolha, desencaminha.(…)” Juliano, não perseguiu os cristãos, mas manteve ativo o culto aos deuses pagãos com a mesma freqüência e apoio do Estado. Nota-se no texto, que o cristianismo também não havia perdoado a infidelidade nos tempos de Constantino. Arma idêntica que veio usar mais tarde em plena Idade média, frente aos tribunais da Santa Inquisição, onde o algoz continuava sendo o Estado. Quanto a população, esta instabilidade religiosa, somada a própria falta de interesse do paganismo, tornava os cultos uma ópera bufa, onde o esforço do imperador era inútil para conter a apatia.

 

 

 

 

 

 

About Benedito Ramos Amorim

Pesquisador, Crítico de Arte e Coordenador de Ação Cultural e Social da Associação Comercial de Maceió, tem livros publicados a partir de 1974: Mona Lisa Um Autorretrato de Leonardo da Vinci - Pesquisa, em 1979 Lamento Derradeiro que recebeu o Prêmio Moinho Nordeste da Academia Alagoana de Letras – Contos, 2003 A Construção do Palácio do Comercio – Pesquisa, Edufal, 2005, Um Amor Além do Tempo – Romance, HD Livros, 2006, Doce de Mamão Macho – Novela, Editora Catavento. Articulista em diversos jornais da capital alagoana desde 1976, no extinto Jornal de Alagoas desde 1976, a partir de 2002 no O Jornal e Jornal Gazeta de Alagoas. Prêmio Graciliano Ramos da Academia Alagoana de Letras com o romance inédito Pensamentos Mágicos em 2006, ano em que assumiu a cadeira número 9 da Academia Alagoana de Letras. Editor por 5 anos do jornal O Palácio publicado pela Coordenadoria de Ação Cultural e Social da Associação Comercial de Maceió. 2019 Prêmio Editora Gracialiano Ramos com edição dos livros, Nadi e 2ª Edição do livro Doce de Mamão Macho.

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