O CASTELO DO MEU PAI
   15 de setembro de 2023   │     3:29  │  4

De passagem por Paris em setembro de 2010, eu vivi um momento muito especial: o que parecia ser um simples passeio cultural transformou-se numa emocionante experiência existencial e fez brotar dentro de mim poderosas recordações afetivas. São lembranças ligadas a um castelo e ao meu pai, rei despótico que governou minha infância com mão de ferro. Era um soberano temido e amado ao mesmo tempo.


Alguns dias antes de viajar, a notícia de que haveria uma exposição das obras do artista Takashi Murakami, no castelo de Versalhes, circulava através das redes sociais. A foto ilustrando a informação me cativara imediatamente, portanto decidi que eu iria de qualquer jeito até o palácio para conferir ao vivo do que se tratava.
Mesmo conhecendo superficialmente Takashi Murakami, eu sabia que ele era um dos artistas mais caros da atualidade. Eu já havia lido em alguma revista que ele possuía uma formação clássica e que tinha paixão por animé (animação produzida no Japão). Seu trabalho é uma fusão entre a arte contemporânea nipônica e a Pop Art norte-americana.
Na nossa chegada em Paris, além do friozinho, o céu não era convidativo. Devido às frequentes ameaças de chuvas, meu marido não estava muito entusiasmado para ir até Versalhes. Não somente tínhamos de pegar o metrô, mas também devíamos apanhar o trem e, enfim, andar um bocado para alcançar a morada real.
Porém, quando eu coloco algo na cabeça, é difícil me fazer mudar de ideia. Eu não queria voltar da viagem sem ver aquela exposição. Seria frustrante abdicar dela estando tão perto. Caso o meu marido não quisesse, eu estava disposta a ir sozinha. As entradas, compradas pela internet, foram enviadas para o nosso hotel.
Graças a Deus, no dia marcado para o passeio, o clima resolveu ser meu aliado. Quando descemos para tomar o café da manhã, um sol radiante sorria maliciosamente no meio de um azul espantosamente primaveril para a época do ano. Meu esposo aceitara o programa, sob a condição de que eu arrumasse um carro que nos levasse até lá.
Pouco após alguém da recepção encomendar um táxi, um reluzente veículo parou na porta do nosso hotel. Dele desceu um homem jovem e esguio que, de imediato, abriu as portas traseiras. Dono de uma silhueta longilínea, ele usava uma calça preta bem justa e uns sapatos bicudos e arqueados parecidos com as gôndolas de Veneza.
Durante todo o percurso, prestei atenção no motorista. Observar os outros é meu passatempo predileto. Expressava-se com um sotaque eslavo. Quando eu quis saber de onde ele vinha, ele confessou ser russo. Pensei imediatamente com os meus botões: “Vai ver que se chama Vladimir!”
Não cogitei Serguei, Igor, Yuri ou Alexei. Só “Vladimir” me vinha à cabeça. Perguntei qual era seu nome. Ele me respondeu:
— Chamo-me Vladimir.
Bingo! Acertei!
Ele não cheirava mal e suas roupas eram impecáveis, mas ele não tinha cara de quem tomara banho naquele dia. Com a barba por fazer, dava a impressão de que tinha pulado direto da cama para o táxi após uma noite de amor. Os seus cabelos desgrenhados pareciam ter sido desarrumados pelos dedos de uma mulher apaixonada.
Durante todo o trajeto, um sorriso de pura beatitude enfeitou-lhe o rosto. Devia estar se lembrando das estripulias da noite anterior. Falando preguiçosamente, como quem fumou vários baseados, ele dirigia de um jeito displicente, usando três dedos de uma mão só, vagamente encostados na parte inferior da direção.
A lembrança do motorista hilário e bêbado da Lady Di, pouco antes do acidente fatal na ponte parisiense, de súbito voltou-me à memória. Decidi pedir para o Vladimir diminuir a velocidade.
Eu continuei observando o rapaz dirigindo com três dedos e pensei: “Parece um tigre satisfeito por ter acabado de comer uma zebra”.
De repente, Vladimir passou a receber repetidas chamadas no seu celular. Ao atender, ele sussurrava algumas palavras no que parecia ser sua língua materna. Logo notei que, durante as ligações, o felino motorista aparentava miar e fazer rom-rom. Apesar de desconhecer o idioma russo, dava para sentir que Vladimir estava utilizando aquela linguagem boba, cheia de diminutivos infantis, que todos os apaixonados do mundo usam para falar com a pessoa amada. Nisso, deduzi que ele estava conversando com a zebra da noite precedente. Não deu outra, dali a pouco, após atender o quinto ou sexto telefonema, Vladimir nos confidenciou:
— É minha namorada. Ela é portuguesa e muito ciumenta, não para de ligar quando estou trabalhando. Quer saber por onde eu ando.
Bingo de novo! Eu sabia que havia uma fêmea apaixonada por trás daquele visual despenteado.
À medida que saíamos de Paris, a estrada atravessava bairros mais arborizados e, aos poucos, foram aparecendo casas burguesas, típicas da região designada como Yvelines. Eu a conheço bem por ter nascido nos arredores.
Fazia mais de vinte anos que eu não colocava os pés em Versalhes. Para falar a verdade, a exposição do Takashi Murakami era a desculpa que eu precisava encontrar para criar coragem e pisar de novo em lugares que pertenciam à minha existência anterior, do tempo em que eu era somente uma simples francesa e que meu pai era vivo.
Quando recebíamos a visita de amigos morando no interior, meu pai, grande conhecedor da História da França, adorava levá-los para visitar o castelo. Parecia o rei apresentando sua própria moradia e fazendo as honras da casa. Durante o passeio, ele ministrava aulas, explicava todos os detalhes da arquitetura e até dados sobre a vida pessoal de Luís XIV, como se este fosse um dos seus antepassados.
Eu apreciava muito esses momentos, pelo fato de que ele aposentava, por algumas horas, o seu lado rabugento costumeiro. Durante um curto espaço de tempo, ele transformava-se numa pessoa que eu queria que ele fosse em tempo integral: um homem charmoso, divertido e espirituoso.
Ao alcançar a cidade, o abalo interior era grande, mas disfarcei bem, meu marido nem notou. Quando o carro adentrou Versalhes, recordei coisas do passado ligadas àquele lugar. Fora naquela cidade que tentei tirar minha carteira de motorista. Não consegui passar no teste, só aprendi mesmo a dirigir no Brasil. Foi também em Versalhes que dei entrada num divórcio para pôr fim ao meu primeiro casamento. Eu tinha somente dezenove anos. Hoje, meu ex-marido faz parte de uma realidade tão longínqua que parece ter sido numa outra encarnação.
No tempo em que eu era criança, somente as pessoas mais afortunadas viajavam. Havia bastantes turistas visitando a residência do monarca, mas não podia existir comparação com as multidões que invadem a cidade hoje. Versalhes da minha infância era palco de alguns passeios bucólicos ao lado dos meus pais que, na época, eram bem mais novos do que eu atualmente.
Para chegar até o edifício histórico, devíamos atravessar a camponesa planície de Montesson, coberta por plantações de alface. Meu digno progenitor conduzia um Citroën DS, veículo oficial dos presidentes da República Francesa. Lembro que eu morria de orgulho quando me sentava logo atrás desse homem bonitão, dirigindo um carro cuja carroceria aerodinâmica era impecavelmente polida!
Aproximando-se do castelo, o motorista russo resolveu estacionar o veículo numa praça cercada por árvores seculares que talvez fizessem sombra ao DS do meu pai, décadas atrás. Desci e andei em direção ao portão principal, invadida por uma emoção intensa.
A fila para entrar era quilométrica. Tivemos de esperar mais de uma hora para poder passar pelo detector de metais do sistema de segurança. Afinal, vivemos novos tempos. A França já foi palco de atentados no passado, e ainda é, mas, depois do fatídico 11 de Setembro, o mundo inteiro mergulhara definitivamente numa nova era. Hoje, qualquer cidadão é considerado potencialmente suspeito, até os raios-X e os cães farejadores provarem o contrário.
Uma quantidade absurda de pessoas, pacientes e disciplinadas, formava uma fila serpenteando no imenso pátio principal. Na minha frente, uma moça, usando um celular, falava em hebraico. Atrás de mim, uma senhora norte-americana tentava conversar com o filho adolescente. O rapaz, entretido com um jogo eletrônico, não parava de mexer as mãos de prestidigitador. Ao meu lado, um homem checava algo através do seu Iphone. Toda essa tecnologia, hoje tão banal, não se via nem mesmo nos apetrechos futuristas usados nos filmes de James Bond da minha meninice.
Apesar das origens variadas, praticamente todas as pessoas vestiam a farda unissex da humanidade dos tempos modernos: calça jeans, moletom e tênis nos pés. Cidadãos comuns e sem nenhum título de nobreza esperavam para adentrar na residência real. Imaginei qual seria a reação de Luís XIV se visse esses turistas, livres do rigor da etiqueta e das roupas cheias de frufrus, prestes a desfilar nos seus suntuosos aposentos.
Após uma longa espera, conseguimos entrar no ostentoso castelo, junto com um grupo de japoneses passivos. Obedeciam às ordens de uma guia autoritária, munida de uma bandeirinha. Ao desfilar por uma passagem mais estreita, a tropa toda se locomovia como gado se enfiando num curral. Sem pensar, sem refletir, seguiam o movimento da caravana e tentavam decorar a aula recitada mecanicamente pela escoteira-chefe.
Como precisávamos retornar a Paris para outro compromisso, nosso tempo era contado. Logo atravessamos os vários aposentos, marchando a passos largos. Eu tinha de lutar com os cotovelos para conseguir abrir caminho no meio da multidão e chegar perto das obras.
De repente, dei-me conta de que ninguém estava ali por causa do rei e que o castelo apenas servia de palco para um evento arrojado. Ninguém ia reparar nos detalhes dourados, ninguém ia perceber a pomposa decoração. Todo mundo só queria saber do vanguardista Takashi Murakami.
Quanta saudade das serenas visitas feitas na companhia do meu pai! Versalhes teve de se dobrar aos gostos atuais. Hoje, parece mais um espaço que promove megaeventos badalados para atrair aglomerações, como num festival de rock.
O que dizer das criações do artista nipônico? Para falar a verdade, eu não tive capacidade de poder analisar plenamente seu trabalho. Vi-me diante de divertidas esculturas futuristas em fibra de vidro cujo colorido era saturado ao extremo.
Alguns bonecos pareciam as figuras kitsch dos parques infantis da Disney. Havia também certas criaturas extasiadas, dividindo espaço com uma profusão de flores com carinhas sorridentes. Apesar de variegada, essa overdose de euforia não conseguiu avivar-me a alma perturbada.
Encontrava-me totalmente incapaz de me pronunciar sobre a produção artística que eu vira naquele dia. Ao passar pelo controle de segurança, o alarme deveria ter apitado, já que eu carregava na mente uma arma extremamente poderosa. Chama-se memória afetiva! Em dois tempos, ela havia dinamitado minha apreciação e metralhado minha percepção.
Reconheço que os tempos são outros e que houve mudanças radicais, tanto na minha vida pessoal como no mundo inteiro. Vi-me engolida pelo turbilhão vertiginoso da globalização: entrei no castelo do rei francês, para ver a exposição de um artista japonês, sentada ao lado do meu marido brasileiro dentro de um carro alemão dirigido por um russo que namora uma portuguesa…
Tirei fotos do trabalho de Murakami. Uma delas mostra um garoto, com semblante perplexo, plantado logo na frente de um quadro representando o rei Luís XIV a cavalo. Aquela imagem retrata exatamente meu estado de espírito naquele dia: eu era aquela criança atordoada, perdida entre dois mundos, duas culturas, duas épocas. Ao sair da exposição para retornar a Paris, virei-me uma última vez para observar o castelo. Lá estava o faustoso edifício diante de mim. Ele, eterno e imutável, eu envelhecida e órfã de pai…

About Chantal Jeanne Lafaye Frazão

Nossa autora, Chantal Jeanne Lafaye Frazão, nasceu nos arredores de Paris, em pleno baby-boom do pós-guerra. Foi viver na capital quando tinha apenas 21 anos. Pouco depois de se mudar, a jovem cruzou o caminho de um brasileiro chamado Antônio. Assim que colocou os olhos nele, ela soube que o destino havia enfim chegado à sua porta! Em pouco tempo se apaixonaram, casaram-se e foram viver em Maceió, no ano de 1979. Chantal virou rapidamente uma alagoana, aprendeu a preparar uns quitutes nordestinos como carne de sol, feijão tropeiro ou cozido com pirão. Lançou o livro Memórias de Uma Franco-Alagoana em 2019 — obra que, nesse mesmo ano, recebeu o Prêmio Notáveis da Cultura Alagoana, na sua 16ª edição. Mais recentemente, no dia 27 de abril de 2023, Chantal entrou na ilustre Academia Alagoana de Letras, ocupando agora a cadeira 33, anteriormente ocupada pela escritora e poetisa Lyzette Lyra. Acompanhando o esposo alagoano nas suas viagens de negócios, Chantal aproveitou a vida e aprontou em NYC, Londres e outros lugares onde sua curiosidade a fez vivenciar inúmeras aventuras, que soube transfigurar em histórias, através das quais o narrador pega o leitor pela mão e o leva para passear em variegas perambulações pelo mundo afora...

COMENTÁRIOS
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  1. Licia Gatto

    Chantal, certamente as mudanças ocorrem sem que possamos entender e acompanhar as novas realidades e situações. Ao ler seu relato, me lembrei da peça ” Assim é se lhe parece” uma realidade observada por vários olhares diferentes. Sua curiosidade, sua memória afetiva e os novos tempos em Versalhes te proporcionam uma experiência rica que resultou num belo texto para nós leitores. Parabéns mais uma vez.

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