ENTRE DEUS E O DIABO ANDALUZ
   23 de outubro de 2023   │     5:19  │  0

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ENTRE DEUS E O DIABO ANDALUZ

Fazia cinco dias que estávamos em Sevilha. Antes de sair do hotel, eu havia estudado cuidadosamente meu guia comprado na FNAC. Vi que a capela de um velho mosteiro, de monjas cistercienses, em puro estilo mudéjar, era altamente recomendada. Notei também que deveríamos telefonar com antecedência para saber se a visita era possível! Achei aquilo um tanto intrigante, afinal era a primeira vez que me era sugerido marcar um rendez-vous para visitar a casa do Senhor. Tentei ligar para o número fornecido no roteiro, mas, infelizmente, era inválido.


Desci até a portaria para pedir informações, só que ninguém por lá soube orientar. Aparentemente, o local não era o lugar mais prestigiado da cidade. Isso me deixou bastante animada, dado que sempre tive uma queda por passeios invulgares! Após colocar uma lista telefônica em cima do balcão, o concierge decidiu pesquisar. Deslizando o dedo indicador sobre a página aberta, cessou o movimento assim que achou o número de contato.
Logo após discar, eu o ouvi fazendo algumas perguntas ao telefone. Em seguida agradeceu, desligou e dirigiu-se de novo à minha pessoa. Contou-me que uma freira, com forte sotaque estrangeiro, havia lhe respondido que não sabia de nada a respeito das visitas, mas que se a gente quisesse, poderia tentar a sorte, chegando lá às 16h em ponto.
Depois de passar a manhã e parte da tarde perambulando pelo bairro Triana, decidimos caminhar até a movimentada Plaza de Cuba. Chegando lá por volta das 15h10min, resolvemos parar imediatamente um táxi. Prontamente instalada no assento traseiro, pedi ao motorista que nos levasse ao Monastério San Clemente, situado em San Lorenzo, na outra margem do rio Guadalquivir.
Observei que ele parecia insatisfeito com a programação das rádios. Não parava de girar o botão do aparelho, até que, finalmente, achou o que procurava. Com voz de supliciado, acompanhou as lamúrias e os prantos de um cantor de flamenco durante todo o trajeto. Mais pitoresco impossível! Batucando o painel do veículo com uma das mãos, dirigiu, voando, até chegar ao endereço requerido.
Ao descer do carro, constatei que o bairro inteiro estava mergulhado em plena sesta. Não havia nem um gato esfomeado circulando nas ruas inundadas pelo sol implacável. Como tínhamos ainda em torno de trinta minutos livres antes do horário estipulado pela freira, logo resolvemos procurar um barzinho aberto para refrescar a garganta.
O lugar, estranhamente pacato, parecia o cenário perfeito de um conto de fadas ibérico. Atrás das misteriosas janelas, imaginei castas princesas andaluzas, dormindo profundamente, enquanto destemidos toureiros estavam a caminho para acordá-las com um beijo na boca.
Não havia veículos estacionados nem um mero comércio aberto, tampouco uma vendinha qualquer ou uma padaria de esquina acessível. Estávamos prestes a desistir quando, de repente, meu marido reparou alguma movimentação mais à frente. Após andar cerca de duzentos metros, descobrimos finalmente uma biboca funcionando. Ao chegar à porta, parecíamos dois beduínos perdidos, alcançando o tão sonhado oásis no meio do deserto.
Reconheci instantaneamente o que poderia ser a hiperbólica decoração de um filme do cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Pendurada na parede situada atrás do bar, havia a caveira
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multicolorida de um cervo ostentando um par de chifres pintados na cor vermelha. Todo enfeitado como a cigana Cármen, da ópera de Georges Bizet, o crânio possuía uma flor, presa na lateral, um longo colar e um vistoso par de brincos. Tomando cuidado para não tropeçar num sapo de borracha roxa, esquecido no chão, aproximei-me do bar.
Fazendo questão de exibir trejeitos afetados, o garçom indagou o que desejávamos para bebericar. Apesar de ter lhe pedido somente uma água e um cafezinho, a simpática figura colocou diante de nós um pratinho de miúdos, acompanhados por largas fatias de pão rústico. Avisou-nos que era oferta da casa.
Logo reconheci o fígado e a moela de um frango, mas, para ser amável, procurei descobrir o nome da iguaria em castelhano. Todo zombeteiro, prontamente o garçom respondeu:
— Es la vagina de un pollo!
Após me deliciar com o petisco e consumir a água, resolvi dar um pulo até o banheiro. Uma boneca loira, colada na entrada de um pequeno recinto, avisava qual era o território feminino. Ao abrir a porta, deparei com um espaço kitsch digno de uma performática drag queen.
Em cima de uma prateleira, alguns perfumes de marca e três ou quatro escovas estavam à disposição da clientela. Acima da pia, um extravagante espelho de camarim, com lâmpadas acesas em sua volta, refletia a imagem do pequeno armário situado na sua frente. Através das portas de vidro, podíamos ver uma profusão de produtos de beleza e algumas caixinhas de porcelana decoradas com delicados motivos florais. Junto da privada, reparei numa balança forrada com pelúcia rosa.
Ao sair do banheiro, distingui um senhor sentado numa cadeira alta de bar. Com o torço debruçado por cima do balcão, percebi que estava desenhando divertidas figuras num volumoso caderno. Bisbilhoteira, aproximei-me para observar-lhe a obra. Logo descobri que ele estava retratando casais formando duplas gays e heterossexuais. Vi também pares de girafas, coelhos, gatos, periquitos e o diabo a quatro. Aconchegando-se junto a nós e falando de um jeito amaneirado, o garçom resolveu dar-me uma aula de castelhano:
— Bueno, aquí es el león y la leona, el niño e el niño, el hombre y la mujer, la chica y la chica, el perro y el perro…
O papo era divertido, amei o irreverente gaiato, mas, infelizmente, precisávamos ir embora, visto que tínhamos o tal encontro marcado com uma serva consagrada. Pouco após o marido pagar, já estávamos de novo na rua encharcada de sol. Louca para conhecer o santo espaço, fui andando na frente, a passos acelerados. Chegando ao nosso destino, descobrimos um portão trancado. Toquei a campainha eletrônica. Sem demora, ouvi uma voz fanhosa questionando:
— Quem é?
Respondi que eu era a pessoa que fizera o pessoal do hotel ligar pela manhã. Aparentando de nada saber, a voz quis entender o que eu desejava. Repliquei que queria somente visitar a igrejinha. A voz avisou que não era possível, uma vez que estávamos em pleno horário da missa.
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Choramingando um pouco, e tentando a qualquer custo amolecer o coração da freira, expliquei que eu vinha de muito longe, precisamente do Brasil. Não demorou muito para meu lamento surtir efeito, pois, sem demora, ouvimos o típico ruído elétrico, avisando que o portão tinha sido aberto.
— Ufa! Consegui! – pensei.
A voz me pediu que avançasse para o pátio, entrasse pela porta situada à direita e atravessasse uma cortina branca. Assim que a gente efetuou os primeiros passos, a grade já estava fechando-se atrás de nós.
Seguindo as instruções, caminhamos um pouco até encontrarmos uma portinha. Depois dela, havia o que parecia ser um lençol pendurado num varal. Desconfiada, afastei-o com a mão. Neste instante, descobrimos um espaço limitado por uma treliça de madeira revestida com fórmica azul. Lembrava uma grande gaiola, em cujo interior havia uma freira em pé nos aguardando. Parecia uma opulenta harpia, uma ave de grande porte, frequentemente confundida com uma pessoa fantasiada. Deu-me a estranha impressão de estar num parlatório, visitando uma condenada à prisão perpétua.
Em pouco tempo, notei que a irmã não parecia querer nos deixar entrar assim tão facilmente. Primeiro, eu tinha de atender a um minucioso interrogatório. Entre outras coisas, ela quis saber quem era o homem que me acompanhava. Com cara de santa, falei que o digno senhor ao meu lado era o meu fiel esposo, pai dos meus adorados filhos. Só não mencionei o divórcio com o marido anterior. Especifiquei também haver frequentado uma escola religiosa. Obviamente, furtei-me de revelar que já havia sido expulsa de três, por mau comportamento.
Balançando lentamente a cabeça, a enclausurada parecia satisfeita com as minhas respostas. Mesmo assim, pressenti que minha astuciosa encenação era insuficiente. Faltava um detalhe: para pisar no santo espaço, deveríamos ajudar o convento.
Em um movimento súbito, por meio do qual levantou discretamente a barra do seu véu, a freira retirou-se toda apressada e voltou cinco minutos depois, carregando umas caixinhas com vários tipos de doces e bolachas, preparados pelas reclusas. Na intenção de ver o Sésamo abrir-se, senti-me obrigada a comprar alguns biscoitos. Depois de observar os produtos, optei por bolinhos redondos, cobertos por sementes de girassol.
Efetuado o pagamento, a religiosa depositou o produto escolhido em uma profunda gaveta com abertura para ambas as partes: o lado do seu cativeiro e o do meu mundo livre. Em seguida, ela empurrou energicamente o compartimento na minha direção, a fim de eu recuperar os “ingressos” adocicados.
Após atender a tantas negociações, senti-me no direito de interrogá-la. Havia chegado a minha vez! Soube então que seu codinome religioso era irmã Macarena e que nascera nas Ilhas Canárias. Insistindo um pouco mais, informou-me seu verdadeiro nome de batismo, aquele escolhido pelos seus pais, e fez-me prometer jamais divulgar tal segredo.
Ostentando um sorriso afável, aparentava estar extremamente contente ao notar o visível interesse de uma desconhecida em relação ao seu confinado destino. Animada pela conversa, vi as suas bochechas ficarem coradas à medida que ela foi se revelando. Atrás do severo par de óculos, dois olhinhos de menina danada fitavam-me com intensa satisfação. Em nenhum momento percebi amargura ou infelicidade na sua conversa. Pelo contrário, parecia-me profundamente em paz.
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Eu quis conhecer um pouco da sua rotina. Narrou-me que acordava antes de o sol raiar, tomava um frugal café da manhã e depois cuidava da horta. Fora isso, ia todos os dias a várias missas e preparava os doces durante as tardes. Televisão? Só quando os programas mostravam o Papa em visita pelo mundo.
Perguntei quando entrara no convento. Relatou que fora em 1974! Imediatamente, repassei mentalmente tudo que eu tinha vivenciado desde aqueles tempos: dois casamentos, minha ida ao Brasil, o nascimento dos três filhos, o da minha neta e algumas viagens mundo afora.
Depois de ser chamada por uma jovem noviça, irmã Macarena noticiou que a missa terminara e que precisava retirar-se. Indicou que tínhamos somente alguns minutos, contados no relógio, para entrar, espiar e nos mandar dali. Antes de partir, esclareceu-nos o caminho.
Ao atravessar a porta da capela, percebi de imediato o quanto valeu ter aguentado tanta demora. O resguardado interior tinha realmente uma beleza espetacular. Havia tantas coisas para registrar! Por onde começar? Sem ter tempo de girar o ajuste na posição correta, logo fotografei um motivo ornamental. Eu já sabia que o ângulo não tinha sido dos melhores e que a precariedade da luz não resultaria em algo que prestasse.
Compreendi que eu agira por puro impulso e reconheci que meu gesto estúpido era apenas a reação automática de uma turista praticando um ato inconsequente. No mesmo instante, senti-me uma profana invasora, cometendo um grave sacrilégio. Tomada por uma forte emoção, tive vontade de chorar, de me ajoelhar e de pedir perdão.
Foi então que um lance estranho se apoderou de mim: durante um fugaz instante, vivenciei uma experiência de plena beatitude. O atordoamento durara somente alguns segundos, no entanto foram suficientes para saborear um enlevo arrebatador. Transitando uma alucinante ida e volta, entre minha prosaica rotina de viajante e o reino dos querubins, senti-me como presa dentro de um elevador sensorial, chacoalhado por emotivas turbulências.
Entendi que a visita ao boteco havia aguçado minhas sensações perceptivas. Afinal, entre a escandalosa claridade da rua e a fresca penumbra da capela, experimentara um tremendo choque térmico abalando-me as estruturas da alma. Em menos de meia hora, eu havia saído de um bar GLS para adentrar um casulo de beatas. De um lado, as imagens debochadas desenhadas pelo homem instalado no bar, do outro, as pinturas castas representando temas sagrados…
De repente, o rosto sapeca da freira apareceu entre duas cortinas de veludo vermelho. Com um dedo apontando para o relógio de pulso, fez um sinal, avisando que já era tempo de a gente se retirar. Ao sair da capela, junto do meu esposo, veio-me prontamente à cabeça uma ilustração da Bíblia Sagrada: Adão e Eva cabisbaixos, excluídos do Paraíso.
De volta à calçada banhada pela intensa luminosidade, uma quentura dos infernos nos envolveu dos pés à cabeça. Dobrando à esquerda, eventualmente iríamos encontrar uma cerveja gelada nos aguardando no antro do capeta. Foi naquele exato momento que meu anjinho da guarda cochichou aos meus ouvidos:
— Aconselho-te dobrar à direita!
A contragosto, obedeci…

About Chantal Jeanne Lafaye Frazão

Nossa autora, Chantal Jeanne Lafaye Frazão, nasceu nos arredores de Paris, em pleno baby-boom do pós-guerra. Foi viver na capital quando tinha apenas 21 anos. Pouco depois de se mudar, a jovem cruzou o caminho de um brasileiro chamado Antônio. Assim que colocou os olhos nele, ela soube que o destino havia enfim chegado à sua porta! Em pouco tempo se apaixonaram, casaram-se e foram viver em Maceió, no ano de 1979. Chantal virou rapidamente uma alagoana, aprendeu a preparar uns quitutes nordestinos como carne de sol, feijão tropeiro ou cozido com pirão. Lançou o livro Memórias de Uma Franco-Alagoana em 2019 — obra que, nesse mesmo ano, recebeu o Prêmio Notáveis da Cultura Alagoana, na sua 16ª edição. Mais recentemente, no dia 27 de abril de 2023, Chantal entrou na ilustre Academia Alagoana de Letras, ocupando agora a cadeira 33, anteriormente ocupada pela escritora e poetisa Lyzette Lyra. Acompanhando o esposo alagoano nas suas viagens de negócios, Chantal aproveitou a vida e aprontou em NYC, Londres e outros lugares onde sua curiosidade a fez vivenciar inúmeras aventuras, que soube transfigurar em histórias, através das quais o narrador pega o leitor pela mão e o leva para passear em variegas perambulações pelo mundo afora...

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