A FONTE DAS LÁGRIMAS
   27 de outubro de 2023   │     3:49  │  0

Para Benedito Ramos

E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram;
CAMÕES, Os Lusíadas, Canto III, Estância 135

Mosteiro de Alcobaça

Túmulo de Inez de Castro

 

Túmulo de D. Pedro I

NÃO ADIANTAVA DONA INÊS SE ESGOELAR. Somente eu e as três crianças poderíamos ouvi-la. O Príncipe Pedro saíra cedo para caçar. E quando o fazia não havia hora certa para retornar ao Paço. Restaria a guarda. Mas o fato é que não acorreu.
Lembro, cá da escuridão do túmulo em que meu corpo se desmanchou, que eu estava a aninar o pequeno Diniz quando escutei o que me pareceu um grito da Senhora Dona Inês de Castro. Deu-me a confiar que estaria a rogar por socorro. Arrebanhei as crianças e fui ao salão de onde cri que vinha o clamor.


Deparei-me com um nobre sentado em um escano austero, em madeira de um castanho opaco. O corpo estava curvado para a frente, o queixo repousado nas mãos acomodadas, uma sobre a outra, no pomo que arrematava o punho da espada. Três fidalgos de caras amarradas o ladeavam e Dona Inês jazia ajoelhada aos seus pés. Ela tinha os braços erguidos e as mãos espalmadas, como se a gemer uma súplica.
Eu não tinha como não me dar conta de que estava diante do rei em pessoa: Sua Mercê Afonso IV, o Bravo, Rei de Portugal e do Algarve. Já o havia visto várias vezes, embora cumprida a distância que isenta os poderosos do insalubre cheiro do povo. Sabia, portanto, que era de estatura mediana, porém atlética, com uma robustez que assentava com seu ânimo guerreiro. Tinha o rosto ornado com uma barba farta, vasta e imponente que enunciava inflexibilidade e inclemência. A expressão arrogante testificava o que era voz geral: um monarca soberbo, imperativo, de decisões peremptórias e por vezes despóticas.
Ao olhar para Dona Inês, pude ver os olhos arregalados, a testa franzida, os sobrolhos arqueados, os lábios trementes, a palidez que intensava o alvor da pele. De se dizer que era o pavor encarnado.
Ao se dar conta da nossa chegada, Dona Inês chamou a ela os três filhos: tomou Dom Dinis em um dos seus braços trêmulos e com o outro envolveu Dona Beatriz pela cintura. Dom João pendurou-se em seu pescoço e coseu o corpo às costas da mãe. Via-se que ela estava afundada num desespero que roçava a insanidade. As crianças, aos prantos, estavam estarrecidas. E eu, apática, de longe entestava a aflição que me entravava os músculos.
Ficou-me a impressão de que o monarca não encarava Dona Inês… seu olhar majestático planava rente à cabeça da minha senhora, sem tocar em um só fio de cabelo. Não disfarçava o discurso da ira que desandava em desprezo. Tinha as sobrancelhas franzidas, as pálpebras inferiores tensas, o queixo desafiador. Os lábios entesados expunham a comissura à direita ostensivamente alçada.
Dona Inês, baralhando palavras e soluços, suplicava que ele poupasse aqueles inocentes, até porque seus netos. Se acreditava que a sacralidade do seu poder tinha sido maltratada por qualquer ato que ela tivesse praticado, que esbarrasse nela a vingança do trono.

Testado pelos prantos espavoridos de Inês e dos netos, uma emoção improvável pareceu transfixar a consciência do soberano, embora manifestamente naufragado na lava incandescida do ódio. Mas não podia tolerar que o seu cetro fosse ameaçado pela influência daquela mulher sobre o seu filho Pedro, o Infante.
Refletiu Afonso e a contragosto sentenciou: Que assim seja. Inês, somente Inês, pagaria pelo feitiço que induzira o príncipe Pedro ao adultério e à resistência aos comandos régios. O que viera a ser tonificado pela intromissão dos irmãos dela. Eles e ela concertados no que se passou a conhecer como a sediciosa malta dos Castros.
Apesar de que, quanto a tal crime de lesa-majestade, nada mais se tinha que uma vaga suspeita plantada por um daqueles palacianos venenosos. Daqueles que são (tanto então como ainda hoje) exímios na arte de arrancar favores por cima de açucaradas juras de fidelidade. Afora as intrigas que engendram para desacreditar seus concorrentes no encalço do poder e da fortuna.
O rei temperou a garganta, levantou-se pomposo e me ordenou que afastasse as crianças. Tão logo o fiz, bastou olhar para os lados e balançar a cabeça. Os fidalgos nem pestanejaram. Investiram sobre ela e, sob as vistas atônitas das crianças e diante do semblante fleumático do dinasta, impiedosamente a trucidaram.

Pelo que eu tive notícia, Dona Inês era ainda adolescente quando, na corte, conheceu o Infante Dom Pedro. Nascida na Galícia, ela teria vindo para Portugal como aia de Dona Constança, quando a dama castelhana se casou com ele.
Embora ainda adolescente, Inês já ostentava os encantos de uma mulher plena. Era acomodada e de um certo modo tímida. O olhar atestava os matizes iluminados da verdura que escolta a romaria das águas do Mondego. Tinha olhar sossegado, nariz retilíneo e arrebitado, queixo gracioso, busto discreto, abundantes e longos cabelos dourados. As faces sempre rosadas, os lábios simulavam o desenho de um coração. Os gestos eram harmoniosos, a voz musical, o caminhar cadenciado a sugerir artimanhas da libido.
O Infante Pedro andava pelos vinte anos. Era entroncado que nem o pai, olhar penetrante, nariz romano, lábios carnudos, bigode com as extremidades alçadas. Os cabelos em tom havana eram longos. A barba cerrada afunilava-se desde o mento, o vértice a apontar para o eixo do busto.
Embora apreciasse poesia, música e dança (o que poderia sugerir mansidão) escondia, por trás da docilidade aparente, um temperamento forte e afeito a paixões acesas e indignações ferventes. Nunca notei, mas rumorejavam que a gaguez o sequestrava, quando atiçado pela euforia ou pela indignação.

Voltando ao dia do martírio de Dona Inês, até eu já adivinhava que alguma cena sinistra vinha de há muito anunciada. O rei não escondia o rancor que ela lhe desatava. Uma malquerença que vinha desde o tempo em que tiveram começos os boatos do adultério em que Inês e o Infante eram coautores. Inflamado, já naqueles dias, pela cochichos dos encrenqueiros, encasquetara que ela teria se valido dos encantos dos seus dezesseis anos, das suas insinuações e da sua malícia para seduzir o príncipe. Além da impudente traição a Dona Constança, a quem servia como dama de companhia.
Condutas que Sua Mercê abominava. Não se cansava de repisar os princípios morais e cristão que professava. O que, entretanto, não seria de se tomar como garantia de que, com igual intransigência, era fiel à sua rainha, Dona Beatriz de Castela. Mas justiça seja feita: nunca se soube que arrecadara um único filho bastardo. No que fugia à regra. Até Dom Diniz, de quem filho legítimo com a Rainha Santa, gerara rebentos adulterinos.
Sei também, de ciência própria, que, uma vez morta Dona Constança e assim viúvo o Infante, tal desafeição real não esmoreceu. Antes, para dizer a verdade, alastrou-se. Daí ter exilado Dona Inês. Uma mímica, talvez, com que o rei simulava a si mesmo a consumação de um desagravo, ainda que equívoco, pelo insulto do descaso dos amantes com a supremacia da vontade régia. Medicina, contudo, cuja esterilidade não demorou para ser revelada.
A meu ver, porém, tratou-se de uma armadilha. Quis o rei inflamar a ambição do Infante, ao encenar a insinuação manhosa de que poderia gorar o direito a sucedê-lo no trono.

Segundo correu pela boca dos encrenqueiros palacianos, o soberano mais uma vez ensaiou cortar o mal pela raiz. Intimou o Infante a comparecer ao pé do trono. O príncipe obedeceu. Frente à frente, Afonso IV, a princípio, armou-se de um terno e tolerante ânimo paternal: daria o dito pelo não dito caso o príncipe se casasse com uma dama de sangue real. Não estou pronto, meu rei e senhor, teria gaguejado o Infante. Ainda não venci o luto pela morte de Dona Constança.
O monarca indignou-se. Pedro estaria a mais uma vez desafiá-lo. Uma nova insolência que não aturaria. Ergueu-se de um salto, alvejou o príncipe com um olhar flamejante, ameaçou-o com uma reprimenda corrosiva, deu-lhe as costas e se retirou da sala do trono, a espumar pelos cantos da boca.

Acredito que o soberano, por ser tão impulsivo e estar envenenado pelos cortesãos subservientes, não conseguira ver que a paixão que algemava os amantes era muito mais do que um arroubo efêmero. Era tão intensa e impetuosa (isso sim) que não só empurrara Dona Inês e o infante ao adultério, como os fortificara para o enfrentamento do que fosse que pudesse estorvar aquele enleio.
A verdade era que os dois estavam hipnotizados por um desses fascínios arrebatadores que assanham a imaginação dos poetas. Daqueles que condenam o amante a enxergar, na pessoa do seu bem-querer, a moldura em que se enquadram o céu e a terra.
O amor pode pecar pelo ímpeto, mas não há desafio que o acovarde nem intimidação que o devaste. Não houve estratégia, engodo, artimanha, hostilidade que os apartasse. Inês jamais se deu por vencida; Dom Pedro fez pouco da tirania do seu pai.

O fato do Infante não se ter deixado intimidar não instilou em mim nenhuma surpresa. Sempre o enxerguei tão altivo quanto o pai. E não menos estouvado. O que reza a crônica é que de pronto também abandonou a sala do trono, montou um cavalo e partiu a galope. Foi à procura de refúgio na presença e nos braços de Inês.
Não posso atestar o que não vi, mas posso dizer que, pelo pouco que escutei, com o ouvido grudado na porta de alcova, ele preferiu não a consternar. Silenciou sobre a chantagem tramada pelo pai, na certa intoxicado pelas víboras peçonhentas que pela frente o incensavam, mas pelas costas conspiravam. A perfídia preza cavalgar no lombo da hipocrisia.
Convenceu-a, porém, de que era urgente legitimar os três filhos. Era temerário continuar protelando. De repente poderia ser tarde demais. Deveriam se casar tão cedo quanto possível. Seria consagrado o vínculo que há tanto tempo os enlaçava. Sem falar que seria o primeiro passo para apagar a bastardia das crianças.
Confesso que, embora não tivesse o direito de espioná-los, foi tal o meu júbilo que por pouco não denunciei a minha própria indiscrição. Refiz-me e permaneci na escuta sorrateira e transgressiva. E tive a certeza, pelos ruídos, arquejos e gemidos que atravessaram a porta indiscreta, que eles choraram juntos, amaram-se com a exaltação de sempre e depois adormeceram.

Poucos dias depois da audiência malograda, já passou a transitar nos corredores e nas alcovas do Paço, para alvoroço dos cortesãos mais servis e interesseiros, a notícia de que Inês e Pedro se haviam casado em Bragança. E que o teriam feito com a bênção Bispo da Guarda e às escondidas, eis que não se tinha o mandado e o consentimento do soberano.
Cada fidalgo, então, dentre os mais achegados ou não ao rei, despertou para o quão promissor era aquele momento: fosse para tornar mais extensas e dadivosas as graças do monarca, fosse para finalmente conquistá-las. Cada um, em sua raia na pista de corrida de obstáculos, mais fazia das tripas coração para seguir e chegar à frente dos demais concorrentes. E que se não falasse em espírito olímpico! Seja qual for a maratona em que o pódio promete poder e dinheiro, tudo é permitido. Vale qualquer sabotagem.
Seria fecundo convencer Sua Alteza Real do que já estava ele convencido. E nada melhor do que acordar a sua sede de poder, aferventar o seu orgulho, acariciar a sua vaidade e acerbar a sua gana de vingança.
A magnanimidade de Vossa Alteza já está mais do que demonstrada, bichanou Diogo Pacheco. A resistência do príncipe, instigado por essa mulher e seus irmãos, debilita a coroa e afronta Vossa Majestade, prosseguiu. O trono não pode ser a tal ponto desafiado, alfinetou Pêro Coelho. Urge uma providência drástica e definitiva, por mais dolorosa que seja, aduziu Álvaro Gonçalves. E prosseguiu: Os súditos não podem desacreditar na autoridade do monarca.
Dom Afonso permanecia indeciso. Tinham razão, sim, aqueles nobres e leais fidalgos. Insistir em contemporizar seria debilitar a coroa, a cada dia mais, pondo em risco o Reino. Foi convocado e reunido o Conselho. Não houve um só nobre que discordasse da providência implacável que já se imaginava planeada pelo rei. Inês de Castro é o útero de uma insurreição, incendiou um marquês. E vaticinou: É urgente se antecipar e evitar uma guerra com Castela.
O monarca convocou Diogo, Pêro e Álvaro, pois que os mais entusiastas de uma ação imediata e definitiva. Haveriam de acompanhá-lo na missão redentora de dar fim a Inês de Castro. Não poderia haver mais inteira prova da deferência e da confiança régias. Eles exultaram. Já os outros se morderam de inveja. Não foram o bastante astutos para ganhar a peleja.

Um olheiro informaria quando o príncipe Dom Pedro não estivesse no Paço. Os poucos soldados que faziam a guarda seriam facilmente rendidos pelos que comporiam do séquito real. O príncipe foi à caça. Somente estão aqui Dona Inês, as crianças e a dama de companhia, delatou o soldado aliciado.
Era verdade. Se bem que, ao chegarem, pareceu ao monarca e aos nobres não haver vivalma. Vasculhem aposento por aposento, ordenou o soberano. Os fidalgos o fizeram e encontraram Dona Inês na sala de costura. Era lá que ela costumava desanuviar. Entretinha-se a fazer bordados em que prevaleciam motivos de cavalaria. Estrava na moda. Os infantes estavam comigo no aposento destinado ao lazer das crianças: Com Dinis a cochilar em meu colo; os outros dois, sentados no chão, brincavam as brincadeiras de sempre.
Os três fidalgos, em tributo subserviente a El-Rei, já odiavam Dona Inês com muito mais fervor do que o próprio cabeça coroada. Rudemente a ergueram e arrastaram, com igual ou maior hostilidade, à presença de Dom Afonso, que permanecia impassível feito uma estátua. Talvez ela, naquele instante, tenha bradado a sua primeira súplica por socorro. Mas afianço que, se o fez, eu não escutei.
Asseguro, por tudo o que é mais sagrado, que acorri ao primeiro chamado que escutei. Foi quando, ao abrir a porta, já me deparei com o monarca sentado e os três fidalgos, de pé e a ladeá-lo. Dona Inês estava ajoelhada (já o disse) o tronco inclinado em sinal de submissão, lívida, braços e mãos implorantes. Uma tremedeira enfática lhe percorria o corpo inteiro. Chorava um choro desgovernado.

Quando o príncipe Dom Pedro chegou, o corpo de Dona Inês ainda jazia no mesmo lugar em que os carrascos o desleixaram. O rosto, embora pálido, não contava as dores, o desalento e o pânico que a crueldade e a morte lhe cobraram. Um raio de sol insinuava-se não sei por onde e ia iluminar as mechas douradas dos seus longos cabelos esparramados e em desalinho.
Dona Inês tinha os braços abandonados: o direito rente ao corpo e o outro estendido, como que a apontar para a porta por onde os sicários apressadamente escaparam. Os olhos continuavam abertos e apontados para cima, como que atentos à cena bucólica, pintada no teto, a contar o instante em que se esvaiu o encanto na história de amor de Cupido e Psiquê. O filho de Vênus havia sumido, assim como ela estava a sumir agora.
O sangue que jorrara das feridas abertas pelas punhaladas era agora o leito fúnebre em que ela dormia o sono definitivo das lápides que habitam as capelas mortuárias. Um sono plácido de quem não tem do que se arrepender. Dir-se-ia que, apesar da bestialidade com que imolada, estava a bela Inês posta em sossego.

Foi o que pude contar ao príncipe Dom Pedro, quando ele afinal sofreou o pranto, cerrou os olhos estagnados de Dona Inês, ergueu o corpo em seus braços e o depositou no escano de onde o rei assistiu a execução da sentença que proferiu. Não o ouvi berrar qual alucinado, como andaram dizendo por aí. O que dele escutei foi que algum dia seria rei. E o disse com tamanha sisudez que me fez pensar nas trombetas do Apocalipse.
Aconteceu. Eu ainda cuidava das crianças quando esse dia chegou. Dois anos mais tarde Dom Pedro era Rei de Portugal. Agora tinha como castigar os fidalgos que haviam imolado a minha Senhora Dona Inês de Castro.
Os três algozes estavam exilados em Castela. Pêro Coelho e Álvaro Gonçalves foram extraditados e julgados tão sumariamente quanto o foi Dona Inês de Castro. E também executados com igual rudeza. Não sei ao certo, mas dizem que o monarca ordenou que lhes arrancassem os corações: o de um em se lhe abrindo o tórax; o do outro em se lhe rasgando o dorso. Diogo Pacheco escapou.
Ouvi os que censuraram o novo rei, sugerindo fosse conhecido como El-Rei Dom Pedro I, o Cruel. Pois eu não me canso de dizer que fiquei com a alma lavada. Ele fez justiça. Embora eu reconheça que justiça e vingança andam de mãos dadas, não se podendo afiançar, muitas vezes, onde uma começa e a outra termina.
Mas não ficou por aí. Ainda tive o gosto de ver os destroços da minha senhora serem retirados da sepultura, em Coimbra, para ser finalmente proclamada rainha de Portugal. Mas não testemunhei nem conheci quem tivesse testemunhado o beija-mão que se falou teria sido imposto aos fidalgos, prostrados diante dos restos mortais Rainha Póstuma, como relataram certos trovadores afoitos.
Serei muito feliz, contudo, se, no dia do Juízo Final, puder assistir a emoção que abrasará os amantes, no momento que se erguerem dos seus jazigos e seus olhos se encontrarem. Tal qual planeado por Dom Pedro I, para mim o Justiceiro, ao ordenar que seus mausoléus fossem plantados, frente a frente, no Mosteiro de Alcobaça, tal como lá estão.

Nunca mais consegui dormir. A não ser aos sobressaltos, assombrada por pesadelos perseverantes: sempre a minha Senhora Dona Inês, sob os olhares espavoridos das crianças, a ser repetidamente apunhalada com uma veemência bestial. E eu ali estatelada, a não mais fazer que chorar um choro insubmisso. Nem a morte me libertou dessa tortura.
Minhas perguntas ficaram sem respostas: Não terei sido covarde ao não tentar ampará-la? Às vezes quero crer que sim e por isso mesmo jamais me libertei do flagelo da dúvida. Às vezes, porém, tento me convencer de que não o fui. Afinal de contas, teria eu como me engalfinhar com os algozes, subjugá-los e enxotá-los? E o rei? Haveria como uma serva ser ao menos ouvida por ele? Não estaria eu a só por só imprudentemente cavar a minha própria sepultura? O instinto de sobrevivência é mais convincente que os apelos da compaixão.
Teria a minha inércia, contudo, decorrido da esperança de que a guarda viesse em socorro, eis que instigada por tal escarcéu? Como poderia eu saber que os soldados haviam sido rendidos pela escolta do monarca?
Tantas dúvidas que nem a velhice e nem mesmo a morte me permitiu exculpar-me. E por certo jamais o farei. O remorso não tem como ser regido; tal qual um tornado, nunca se desmancha sem deixar um rastro de desolação.

Mas há um fato que me arrecada um certo consolo. Jamais o contei a quem quer que fosse. E não o fiz pelo receio obsceno de vir a ser maltratada pelo vexame do deboche. Poderia, até mesmo, atrair-me o crédito de louca? E com certa razão.
Eu mesma, caso escutasse história tão mirabolante, somente haveria de atribuí-la ao delírio de alguém mentalmente insano. Embora já soubesse e permaneça a acreditar que o mundo anda repleto de coisas inexplicáveis. Somente os tolos não se convencem do universo de mistérios que nos espreitam.
A idade, por si só, já me alforriava dos sobrossos e melindres. O melhor da velhice é a consciência de que se viveu e ainda se está vivo para comemorar os prazeres e os pesares, os triunfos e os revezes, os encantos e desenganos vividos. Ninguém nasce predestinado a ser um vencedor ou um fracassado, feliz ou infeliz; nascemos exclusivamente para viver.
Eu tinha vivido e por muito mais tempo do que algum dia poderia acreditar que viveria. E morrido como cada um haverá de morrer. E posso dizer, por experiência própria, que não é a soma dos anos o que importa; o que importa é o que fizemos com eles. Para o bem ou para o mal, portanto, vou finalmente quebrar o meu silêncio.

Beatriz havia recolhido o lenço que estava com Dona Inez na hora em que foi trucidada. Estava embebido em lágrimas e sangue. Fiz de conta que não vi. Sabia ser uma lembrança infausta, talvez macabra. Mas entendi que a menina não decidiu guardá-lo pela memória do martírio, mas sim da mãe que lhe havia sido arrancada.
Calei. Mas o príncipe por alguma razão o encontrou. Dez ou quinze dias após o sepultamento chamou-me e ordenou que eu o levasse ao jardim e o depositasse no recanto em que ele e Dona Inez costumavam ser somente eles com eles e o crepúsculo. Fui.
O recanto de que falo não era distante. Tratava-se de uma parede rochosa construída pela natureza e com umas tantas ranhuras esverdeadas por tufos de ervas intrometidas. Em sua base abria-se um nicho que simulava uma meia-lua, o arco sinuoso voltado para o alto. Não era profundo. Mas a sua intimidade era resguardada por uma escuridão noturna.
Ao lá chegar um rumoroso silêncio saturava a natureza, somente profanado pelo cântico piedosa do coral das folhas dos choupos e salgueiros, regidas pelo sol poente. Lá no alto os milhafres-negros encenavam suas acrobacias pré-nupciais ou planavam sossegadamente a espreitar o chão, na esperança de uma presa. De vez em quando feriam a mansidão dos instantes com seus gritos estridentes que plagiam relinchos.
Depositei o lenço na escuridade do ventre da gruta, solucei uma prece pela alma de Dona Inez e me ergui com a lassidão dos que não querem partir. Suspeitei, a princípio, que uma vertigem estava a ponto de me abater. Espantei, porém, a ameaça de desfalecimento e ensaiei duas ou três passadas.
Foi quando escutei um cochichado de água a fluir. Olhei para trás e eis que vi, com esses olhos que a terra há séculos já comeu, que um fio d’ água brotava do íntimo daquela gruta em que fizera repousar o lenço de Dona Inês de Castro. A princípio acanhado, logo começou a tomar corpo. E a água surgente, a tomar ânimo, cantarolava ao percorrer um leito espontâneo de rubor sanguíneo.
Não seria capaz de dizer se estremeci num susto ou exultei num êxtase. Talvez não mais do que soçobrei no vórtice perturbador de um mistério. Numa coisa, contudo, me fiei: o que estava a brotar daquela nascente eram lágrimas de Dona Inez de Castro. E com elas o sangue pisado que carminava as paredes da calha do mirrado regato. Aquele olho d’ água foi chamado Fonte das Lágrimas. E ouvi dizer, cá nas entranhas da terra, que ainda está por lá, para quem quiser ver.
Alcântara (Lisboa), outubro de 2023

About Carlos Mero

CARLOS MÉRO nasceu em Penedo (1949). Membro da Academia Alagoana de Letras, do IHGAL e da Confraria Queirosiana (PORT.). Já integrou o Comité Scientifique da Revue REFLEXOS - Université Toulouse Jean Jaurès – FR.). Principais publicações: O Beco das Sete Facadas e outras estórias alucinadas (Contos). São Paulo: Marco Zero. 2005 - A lua de fel do casal Valhamor (Conto). Revue L’Ordinaire Latino-Americain, nº 212/2010, Université de Toulouse II – Le Mirail. - O amargo regresso da desesperança. Revue Caravelle nº 96/2011 - Université de Toulouse II – Le Mirail - Travessias (Contos - coautora: Cristina Duarte-Simões). Maceió: Viva. 2013 - Graciliano Ramos: Um monde de peines. (Depoimento). Lille (Fr): The BookEdition. 2015 - A deserção de Maíra (Novela), in Inventando Maíra S. Paulo: Scortecci. 2016 - O chocalho da cascavel (Contos). S. Paulo: Scortecci. 2016 - Um gosto de mulher (Poesia). S. Paulo: Scortecci. 2018 (2ª edição) - Dias assombrados em Roma (Memórias). S. Paulo: Scortecci. 2ª ed. 2020 - Contos covidianos. S. Paulo: Scortecci. 1ª e 2ª eds. 2021); Os dois melros (Conto). Rev. de Portugal nº 18/2021; Eça de Queirós e Graciliano Ramos: Diálogo criativo (Palestra: Vila Nova de Gaia - 15.03.2022). Rev. de Portugal nº 19/2022.

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