Em seu clássico “Contos Tradicionais do Brasil” Câmara Cascudo na seção dedicada aos animais expõe o “Decreto Libertador”. Segundo Cascudo:” Existia um descontentamento muito grande. Inimizades degeneravam em consequências prejudiciais. No reino animal entendia o leão que poderia acabar com esse estado de coisas baixando um decreto. Um decreto que viesse regular a vida — e que acabasse com as competições”.
O leão, o rei dos animais não aguentava mais tantas reclamações que chegavam de todos os lados. Das eternas confusões e intrigas, decidiu baixar um decreto acabando com todas as desafeições. E o boato se espalhou rápido entre os animais que nesse tempo falavam. Nisso, o galo acabava de cantar saudando o dia que nascia e pensou em baixar do poleiro, mas avistou a raposa que vinha se aproximando.
Ao invés da raposa se esconder e aguardar a noite chegar para tentar pegá-lo, ela se aproximou em plena luz do dia e amistosamente puxou papo com o galo “Desça daí compadre! Agora e daqui pra frente estamos todos em paz e harmonia, é festa pra tudo quanto é lado por onde passei! O rei baixou um decreto acabando as malquerenças! Desça daí que eu lhe mostro o decreto! ”Nisso, o galo viu um cachorro gigante que vinha correndo em direção à raposa.
Diante daquele vulto insólito e disposto à violência, língua e dentes de fora, a raposa disparou, levantando poeira: pernas pra que te quero! Atrás seguia o cachorrão pega não pega. É quando o galo usando toda a força de seus pulmões lembrou de gritar: “Comadre raposa, mostre o decreto a ele. Você não disse que as inimizades se acabaram? Pare de correr tanto, mostre o decreto comadre!”.
Essa fábula se repetiu no Brasil dos últimos anos, reforçada pelas fake news das redes sociais: um leão logo depois de eleito pela urna eletrônica propalou que as urnas eletrônicas eram fraudulentas, que o comunismo ia se instalar no país e iam fechar as igrejas, que iriam implantar um tal kit gay nas escolas. Até quando surgiu a pior pandemia dos últimos 100 anos alardearam que as vacinas — que preveniam da letal virose que matou 740 mil brasileiros — transformavam todos em jacarés, fato que desgostou muito essa mal compreendida espécie.
Depois, com as eleições sendo vencidas pelos adversários, eles urdiram um “Decreto libertador “: ocuparam as portas dos quarteis do Exército pedindo golpe militar, bloquearam as estradas e impediram a circulação até de ambulâncias, invadiram a sede da Polícia Federal; atacaram e depredaram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. Fartas foram as omissões, leniências e cumplicidades, que se fossem corrigidas previamente e legalmente poderiam ter evitado que mais de mil fossem presos e processados, muitos dos quais foram vítimas inocentes que acreditaram nas fake news que as redes sociais disseminaram.
Um cristão puro exclamou:” Eu só aceito um ditador, só aceito um salvador da pátria: Jesus Cristo e só Ele quando voltar pra Terra!”, no que um outro retrucou: “Ele já veio e o crucificaram, se Ele voltar vão fazê-lo novamente!”. Nações como Israel, anualmente reverenciam a tragédia do Holocausto. O Brasil precisará todos os anos reverenciar o 8 de janeiro, sem alardes, sem perseguições e sem impunidades, mas com respeito e dignidade salientar a resistência e a resiliência da democracia nacional.
Marcos Davi Melo
Médico e membro da AAL e do IHGAL