Author Archives: Carlos Mero

About Carlos Mero

CARLOS MÉRO nasceu em Penedo (1949). Membro da Academia Alagoana de Letras, do IHGAL e da Confraria Queirosiana (PORT.). Já integrou o Comité Scientifique da Revue REFLEXOS - Université Toulouse Jean Jaurès – FR.). Principais publicações: O Beco das Sete Facadas e outras estórias alucinadas (Contos). São Paulo: Marco Zero. 2005 - A lua de fel do casal Valhamor (Conto). Revue L’Ordinaire Latino-Americain, nº 212/2010, Université de Toulouse II – Le Mirail. - O amargo regresso da desesperança. Revue Caravelle nº 96/2011 - Université de Toulouse II – Le Mirail - Travessias (Contos - coautora: Cristina Duarte-Simões). Maceió: Viva. 2013 - Graciliano Ramos: Um monde de peines. (Depoimento). Lille (Fr): The BookEdition. 2015 - A deserção de Maíra (Novela), in Inventando Maíra S. Paulo: Scortecci. 2016 - O chocalho da cascavel (Contos). S. Paulo: Scortecci. 2016 - Um gosto de mulher (Poesia). S. Paulo: Scortecci. 2018 (2ª edição) - Dias assombrados em Roma (Memórias). S. Paulo: Scortecci. 2ª ed. 2020 - Contos covidianos. S. Paulo: Scortecci. 1ª e 2ª eds. 2021); Os dois melros (Conto). Rev. de Portugal nº 18/2021; Eça de Queirós e Graciliano Ramos: Diálogo criativo (Palestra: Vila Nova de Gaia - 15.03.2022). Rev. de Portugal nº 19/2022.

Auto de fé
   14 de abril de 2023   │     3:10  │  0

PENEDO. COMEÇOS DO ANO DA GRAÇA de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil novecentos e quatro.

As labaredas se enfrentavam no que lembrava uma acirrada escaramuça ou uma dança frenética. Cada uma mais arrojada do que a outra. Era como se disputassem a crista de um pódio imaginário. Daí por que, tal qual as impassíveis torres da igreja, espigavam-se no encalço da lua nova emparedada por nuvens trevosas.
Isso mesmo… As chamas como que simulavam empenhar-se num combate corpo a corpo. Mas alguém poderia enxergá-las a encenar um improvável grand battement. Dava para acreditar que se sentiam agraciadas com uma missão divina: incinerar os pecados do mundo, calcinar as heresias e salvaguardar as verdades canônicas apregoadas pela corte vaticana.
Entre as fagulhas que se alteavam desde a pira ardente vinham miúdos fragmentos de tamanhos e formas discordantes. Tinham esguios contornos negros, emparceirados com beiradas em brasa viva que ligeiro desfalecia. Havia letras, palavras e sinais gráficos impressos naqueles retalhos. Noticiavam que era em livros que estavam a atear fogo.
A multidão que sitiava a fogueira dava jeito de ter os solados dos sapatos grudados nas calçadas ou no leito da rua. Não arredava o pé. Parecia continuar hipnotizada pelo sermão incendiário que, durante a Missa Campal, vinha de ser despejado pela boca de um frade capuchinho de olhos esbugalhados, gestos dramáticos e voz soturna de coruja rasgando mortalha. O que era agora esporeado pela coreografia das bruxuleantes línguas de fogo, iluminando a noite recém-nascida. Cada um daqueles rostos trazia estampada uma expressão de exaltada euforia: a turba festejava o furor das chamas e aplaudia os gemidos que estralavam na intimidade do fogaréu.

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O DIA QUE NÃO TERMINOU Ao filho que não vi sorrir
   23 de março de 2023   │     16:21  │  0

 

HÁ, NA CASA DE ARGEMIRO, um arremedo de oratório na sala de estar. Um nicho que lembra os que ainda puderam ser vistos nas ruínas tostadas de Pompeia. Mas somente para quem olha de longe. Quando se apura a vista, logo se vê que o de cá não tem nada a ver com os de lá. Bem comparados, a afinidade não vai além de uma acanhada aparência.
No de Argemiro não há divindades domésticas, como as que teriam sido arranjadas nos relicários que escaparam da fúria do Vesúvio. O que há são imagens miúdas, de apenas sugerido feitio humano, que se esforçam para significar a gente da casa: os pais, os filhos e os netos. Também os dois gatos que, a depender do humor, atendem por Marília e Dirceu. Ela, com sua veste branca que nem alvaiade; ele, de um louro esbanjado e apenas traído por um borrifo moreno que lhe pousa na fronte.

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O DITO E O NÃO DITO
   15 de março de 2023   │     17:52  │  1

Ainda bem que não perdi, nesta manhã de 8 de março de 2023, a oportunidade de escutar as lições dos Professores Roberto Sarmento e Marcos Bernardes de Mello, em seus pronunciamentos na Academia Alagoana de Letras.
Roberto Sarmento a demonstrar, nos tim-tins, a verdade por trás da hoje tão euforicamente cultuada linguagem neutra, a ponto de haver quem tente fazer parecer que está em seu exercício a mágica que apagará os preconceitos, restaurará a solidariedade entre os homens e salvará a humanidade da autofagia.
A evidenciar, ainda, que uma língua, um dialeto, não é uma realidade artificialmente erigida por edito ou qualquer outro ato estatal, embora possa torná-la língua oficial (idioma) de uma coletividade politicamente organizada. O que, entretanto, não é criar. Na verdade, há, por trás da formação de cada língua, uma longa história de assimilação, mescla, adaptações fonéticas, ampliação e flutuação do vocabulário. Enfim, um processo lento, natural e evolutivo tangido pelas vivências e pela cultura e seus intercâmbios. O que impede transformações arbitrárias, imediatistas. Daí haver quem diga que quando morre um idioma morre também uma história.
Marcos Bernardes de Mello (com a autoridade de quem conhece o Direito de cima a baixo, de uma banda à outra, da frente para trás e de trás para a frente), a denunciar a realidade, nua e crua, do quanto a segurança jurídica, hoje, vem sendo comprometida por decisões judiciais emotivas e por vezes caprichosas. O que decorre do surto de entendimentos que repudiam a interpretação desapaixonada das leis, em favor de convicções formadas de encomenda, segundo as vertigens políticas e ideológicas do momento.
Enfim, uma construção jurisprudencial transitiva e temperamental: transitiva, quando se denuncia com a instabilidade típica da moda; temperamental, quando se confessa infectada por inclinações de grupos pontuais e a desacreditar os conceitos elementares que definem o abstrato e o geral como atributos essenciais das leis.
Ambos os expositores, impõe assinalar, repousados na simplicidade dos que não carecem da pompa dos caçadores de aplausos. E não carecem porque não são planetas invejosos do sol que os alumia nem cobram louvações pelo brilho que semeiam.
Também nos abriram os olhos para os sombrios tempos que hoje conhecemos: pensar virou ato subversivo da ordem pública; falar o que se pense… uma agressão aos domini da pátria; discordar dos gestores da verdade… um quase suicídio.
Enquanto isso: sufocar a razão alheia é compor um hino à liberdade; impor à maioria o que pensa qualquer grêmio que se condecore como minoria… um louvor à prevalência da vontade geral; espancar a Constituição, com o pretexto de resguardá-la… um gesto de patriotismo e de amor à democracia; mentir… uma nódoa que só macula os que contradizem as pregações dos fabricantes das verdades prontas e acabadas. Sem esquecer a prática mesquinha de inculpar o adversário por vícios detestáveis, o mais das vezes porque o detrator, ao tomá-lo como espelho, é a si mesmo que enxerga.
Brasil dos paradoxos. Brasil do que é pelo que alguns impõem que seja, como se o fosse.

 

Palestra apresentada na sede da Academia Alagoana de Letras por Professor Doutor Marcos Bernardes de Mello

 

Palestra apresentada na sede da Academia Alagoana de Letras por Professor Doutor Roberto Sarmento