PENEDO. COMEÇOS DO ANO DA GRAÇA de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil novecentos e quatro.
As labaredas se enfrentavam no que lembrava uma acirrada escaramuça ou uma dança frenética. Cada uma mais arrojada do que a outra. Era como se disputassem a crista de um pódio imaginário. Daí por que, tal qual as impassíveis torres da igreja, espigavam-se no encalço da lua nova emparedada por nuvens trevosas.
Isso mesmo… As chamas como que simulavam empenhar-se num combate corpo a corpo. Mas alguém poderia enxergá-las a encenar um improvável grand battement. Dava para acreditar que se sentiam agraciadas com uma missão divina: incinerar os pecados do mundo, calcinar as heresias e salvaguardar as verdades canônicas apregoadas pela corte vaticana.
Entre as fagulhas que se alteavam desde a pira ardente vinham miúdos fragmentos de tamanhos e formas discordantes. Tinham esguios contornos negros, emparceirados com beiradas em brasa viva que ligeiro desfalecia. Havia letras, palavras e sinais gráficos impressos naqueles retalhos. Noticiavam que era em livros que estavam a atear fogo.
A multidão que sitiava a fogueira dava jeito de ter os solados dos sapatos grudados nas calçadas ou no leito da rua. Não arredava o pé. Parecia continuar hipnotizada pelo sermão incendiário que, durante a Missa Campal, vinha de ser despejado pela boca de um frade capuchinho de olhos esbugalhados, gestos dramáticos e voz soturna de coruja rasgando mortalha. O que era agora esporeado pela coreografia das bruxuleantes línguas de fogo, iluminando a noite recém-nascida. Cada um daqueles rostos trazia estampada uma expressão de exaltada euforia: a turba festejava o furor das chamas e aplaudia os gemidos que estralavam na intimidade do fogaréu.