Medicina e literatura. Médicos-escritores. Não é difícil citar vários exemplos. Rabelais, Tchekhov, Conan Doyle, William C. Wiliam, Somerset Maugham, Celine, Jorge de Lima, Miguel Torga, Peregrino Júnior, Pedro Nava, Guimarães Rosa, Dyonélio Machado ,Cyro Martins, Lobo Antunes e Milton Hênio Neto de Gouveia, para citar apenas um entre os esculápios alagoanos que escrevem na atualidade. Mas é possível estabelecer uma relação precisa, uma associação causal , por assim dizer , entre medicina e literatura? Para isso seria preciso um estudo mais aprofundado da questão, seria preciso comparar a incidência da produção literária nas várias profissões eventualmente exercidas pelos escritores, quando (exceção) não se dedicam unicamente à literatura. No fundo, várias são as razões que levam as pessoas a escrever: a vida e a morte, o amor, a felicidade, a tristeza, o mundo e o universo…enfim tudo o que ao ser humano possa interessar.
Moacyr Scliar foi um médico e intelectual gaúcho com exuberante produção literária, expressa em várias obras consagradas, entre as quais “A Paixão Transformada”, cujo subtítulo é a História da Medicina na Literatura, a sua primeira edição veio a lume pela Companhia das Letras em 2014. Leitura verdadeiramente apaixonante, não só para médicos e amantes da literatura, como para todos os que se interessam pela condição humana. Ela será uma das minhas fontes de consultas para alguns artigos que almejo escrever sobre o tema para o blog do jornal Gazeta de Alagoas, essa inciativa primorosa do meu querido confrade da Academia Alagoana de Letras, o escritor Benedito Ramos.
Segundo Scliar, os médicos escrevem (até escreviam mais, arrisco eu…),e seria natural que os médicos escrevessem. Como muitos outros profissionais, habitam o universo da palavra escrita ;sempre buscaram conhecimento em textos clássicos( a Anatomia de Testut, a Medicina Interna de Harrison, a Medicina Preventiva de Maxcy-Rosenau ) e até pensam seguindo o aforismo do grande clínico William Osler, no paciente como “um texto”. Um texto a ser estudado denodadamente para ajudá-lo a enfrentar e superar as suas enfermidades.
A dificuldade reside, em primeiro lugar, no fato de que a medicina não é uma ciência, no sentido em que a física é ciência ,a química é ciência. Trabalha com uma margem de incertezas que não é habitual nas ciências. O escritor Somerset Maugham, que estudou medicina, lembra que seu professor de anatomia lhe pediu que procurasse certo nervo no cadáver. Maugham não o encontrou, porque não estava no lugar habitual. Comentário do professor:” Em anatomia, o normal é a exceção”. Em anatomia, em fisiologia e em clínica. O normal em medicina, é um evento estatístico. Como diziam os antigos clínicos franceses :”Dans la médecine,comme dans l´amour , ni jamais, ni toujours”.
A comparação da medicina com o amor é muito pertinente, porque a relação médico-paciente é inevitavelmente colorida pela emoção. Pela angústia, muitas vezes. O que eu tenho doutor? O que meu filho tem doutor? É a vida, os seus desafios, os que cuidam dela e ainda acham motivos suficientes para escrever sobre isso. É a medicina e a literatura, essas paixões universais e eternas.
Marcos Davi Melo
Médico e membro da AAL e do IHGAL.
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