Adelaide
   5 de abril de 2023   │     1:20  │  1

 

Onde está Adelaide? Essa pergunta ecoava pelos corredores e oitões da casa, sempre que a menina desaparecia das vistas do mundaréu de gente que vivia naquela propriedade. Todas as filhas do seu Manoel Ignácio tinham medo dos gritos e ordens do pai. Só não aquela sapeca destemida que o pai tentava, em vão, trazê-la a rédeas curtas. Escorregadia, teimosa, desobediente, porém carinhosa e cheia de artimanhas, sabia como engazopar o seu Manoel.
Adelaide vivia o hoje, sempre escapulindo das obrigações diárias que o pai, viúvo convicto – jamais aceitou casar outra vez, por achar que já tinha mulher demais na sua vida –, distribuía para as oito filhas, com o intuito de ensinar-lhes o que era dever e obrigação, preparando-as, naturalmente, para que fossem boas esposas. Adelaide, a caçulinha, passava o dia lendo ou subindo em árvores. Um enorme cajueiro era a sua árvore favorita que, com seus pingentes dourados, ouvia as suas queixas e sonhos. E o pai ralhava: “Adelaide, desça daí, parece uma moleca! Venha ajudar suas irmãs!”.


Até que um dia, a fazenda vizinha, que estava à venda há um bom tempo, foi comprada por um moço bonito e ainda jovem. Ele passava pela porteira todos os dias, montado num belo cavalo de pelo lustroso. As outras mocinhas suspiravam. Mas Adelaide, atrevida, corria à porteira assim que ouvia, ao longe, o trotar do cavalo. “Dia, menina bonita!”. E ela não respondia, mas colocava todos os dentes no quaradouro. E assim, silenciosamente, foi se formando uma cumplicidade danada de fértil entre ambos. Os olhos da menina brilhavam. Ela cantarolava o dia inteiro, e passou a ajudar nas tarefas domésticas de bom grado. O pai, nem de longe suspeitava desse encantamento. Para a empregada, uma escrava alforriada, muito antiga na casa, o homem confessou: “Estou muito contente com o comportamento da minha pequena! Acho que ela está amadurecendo!”.
Adelaide contava, então, quatorze anos. Doninha, no entanto, andava arreliada com aquele comportamento. “Macaca velha”, como se costuma dizer, passou a vigiar a menina. Percebeu então que ela, pontualmente, largava tudo o que estava fazendo para olhar de perto o seu amado. Eles tinham um pacto silencioso. E foi assim que, um dia, o cavaleiro de porte atlético e de olhos claros combinou: “Quer vir na minha garupa? Pegue seus pertences mais importantes; não muita coisa, pois nada lhe faltará. Hoje à noite, às onze horas, virei buscá-la”. A coisa foi tão rápida e inesperada que não deu tempo de Doninha avisar ao patrão sobre o que estava acontecendo. As irmãs não desconfiavam de nada, a não ser Maria Petrúcia, que todas as noites, num cantinho do alpendre, ouvia com atenção e entusiasmo as confissões da irmã apaixonada.
Já casada, Adelaide, que continuava serelepe, borbulhando energia, destoava do Manoel, um homem docilmente caseiro, com uma disciplinada rotina: de casa para a lida, da lida para a rede. Essa maneira de ser do marido começou a incomodar os rebuliço interior. Adelaide fugia de casa para jogar baralho e para dançar coco de roda, essa dança saltitante e vigorosa, irmã gêmea da sua alma. Nada de errado, pensava ela, pois fazia tudo isso na casa de parentes e amigos mais chegados. Segundo me confessou, já bem velhinha: “fazia amorzinho com Manoel, mas, quando ele dormia, eu pulava a janela do nosso quarto e me metia nas brenhas e escuro de noites só iluminadas pelo luar, nem sempre generoso, a fim de reencontrar a minha alegria”.
Um dia, Adelaide achou entre os livros do marido uma página arrancada de alguma revista, com uma gravura de uma casa enorme, um verdadeiro palácio, com uma arquitetura muito bonita. Nela, as inscrições: Palacete Scholz, construído pelo alemão Waldemar Scholz, considerado o “Barão da Borracha”. Curiosa, Adelaide sondou o marido sobre a gravura, e ele desconversou. Nessa época, o casal já tinha três filhos pequenos.
Hora do almoço, Adelaide forrou a mesa, e já vinha com uma pilha de pratos nas mãos, quando viu o marido fechando o portão. “Vai sair, Manoel? O almoço já está indo pra mesa!”. E ele, apressado, fechou o ferrolho e disse: “Volto já!”. Foram dias e dias de espera, e nada de Manoel Ignácio. Meses depois do seu desaparecimento, um parente distante lhe falou que tinha visto Manoel no estado do Amazonas, trabalhando nos seringais. Associando essa notícia à gravura da revista, Adelaide pensou: “Manoel foi tentar enriquecer”. Era a famosa “corrida da borracha”. E o seu marido devia, naqueles momentos em que, ensimesmado, a gozar de uma quietude ao balanço da rede, ter sonhado em ser um “barão da borracha”.
Nos anos subsequentes, a esperança do retorno do marido, rico ou pobre, nunca esmoreceu. E a esposa, abandonada sem explicações, já não morava no interior, pois precisava dar uma melhor educação aos três filhos. Com seus olhinhos miúdos, ficava à janela por muito tempo, à espera do seu belo cavaleiro. Com o olho na estrada e o coração apertado, vivia disfarçando para os filhos a tamanha tristeza que carregava na alma. Costurar e bordar para fora foi a saída para a subsistência da família, pois o dinheiro da venda da fazenda já tinha sido devorado pelas despesas de casa.
Contava Adelaide cinquenta anos de idade, e ainda sonhava com os olhos claros do marido e seus fortes braços a enroscá-la e aquecê-la. Dos três filhos, restava tão somente a mais velha, já casada e com filhos. O filho homem era um capitão, alto e bonito como o pai, que morreu numa emboscada, quando, ligado a uma volante, tentava prender Lampião e seu bando. A caçula, que fisionomicamente era a mais bonita e de uma elegância natural, tinha a impetuosidade da mãe, o gosto pela leitura e pelas costuras e bordados. Andava pelo interior de Alagoas e Pernambuco, atendendo a uma pródiga freguesia que lhe reverenciava o talento herdado da mãe.  Muito independente e anos à frente do seu tempo, era uma amazona perfeita. Montada no seu belo cavalo, viajava de fazenda para fazenda ou de engenho para engenho, onde passava três a seis meses bordando enxovais para as moças casadoiras ou para bebês que estavam prestes a vir ao mundo. Essa amazona morreu muito jovem ainda, acometida pelo mal da época: a tuberculose.
E foi nessa época, após a morte dos dois filhos, que uma das freguesas de Adelaide lhe ensinou uma “simpatia” para fazer na véspera da festa de São João: teria de comer três caroços de milho assado e ficar atrás da porta. Na primeira palavra ou frase ouvida, estaria a resposta por que tanto esperava. Assim que se colocou atrás da porta, iam passando duas pessoas (a casa era de porta e janela na calçada), e uma delas disse: “nunca mais!”, e soltou uma gargalhada. Adelaide tomou aquilo a sério, perdeu todas as esperanças de que o marido voltasse e, com o coração oprimido, vestiu-se de luto aliviado, um luto brando, digno de uma viúva de marido vivo. Quando uma de suas netas me contou esse episódio, logo me lembrei de “O corvo” de Edgar Allan Poe, personagem que profetizou a amargura da eterna solidão.
Nossa personagem faleceu aos cem anos de idade, carregando uma dor aguda no peito e sempre usando o mesmo tipo de vestimenta do dia em que seu marido a deixou: um vestido comprido até os tornozelos, mangas compridas e corpete fechado até o pescoço. Quando lhe perguntei – ela já estava esquecida de tudo e de todos –, uns meses antes do seu falecimento: “E o seu marido, dona Adelaide?”. Ela ergueu a cabeça, esboçou um sorriso, e disse: “Ah! É um homem alto, bonito, muito bonito!”.

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About Eliana Cavalcanti

Nasceu em Maceió/Alagoas e aos dois anos de idade passou a morar em Olinda-Pernambuco. Aos oito anos iniciou seus estudos de balé em Recife, aos quinze anos passou a ensinar balé na sua escola. Atuou como primeira bailarina do Grupo de Ballet do Recife. Em 1973, casou-se e passou a residir em Maceió, onde fundou o Ballet Eliana Cavalcanti e, em 1981, o Ballet Íris de Alagoas (1981-2002). Bailarina, coreógrafa e mestra com 57 anos dedicados ao ensino do balé, Eliana também é escritora e Mestra em Literatura pela Universidade Federal de Alagoas (2009) e sócia efetiva da Academia Alagoana de Letras, desde 2012. É autora de três livros e organizou um outro. Tem diversos contos, crônicas e artigos publicados em jornais, revistas literárias e sete antologias. Dentre seus prêmios e distinções, destacam-se: Medalha Jorge de Lima ( Governo de Alagoas/ 1995), Prêmio Concorrência FIAT/1990 com o espetáculo “Certas Emoções”; 2º lugar em coreografia (Bento Gonçalves - RS-1995); diploma de Benemérita das Artes (SECULTE /2001); Comenda Mário Guimarães (Câmara dos Vereadores /2002), Diploma de Construtores da Dança em Pernambuco (Conselho Brasileiro de Dança /2004); Membro da Ordem do Mérito dos Palmares, no grau de Oficial (Governo de Alagoas/2008), Comenda Senador Arnon de Mello (Instituto Arnon de Mello/ 2008); Comenda Nise da Silveira (Governo de Alagoas/2013); Prêmio “Mulheres que escrevem” ( SECULTE/ 2023).

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