FERNANDO JORGE PESSOA DE LIMA
   12 de abril de 2023   │     2:10  │  0

Poeta interior, que escreve de dentro, Jorge de Lima foi mais longe, mais alto e mais fundo que qualquer um. Além de escrever uma extensa e variada obra poética, ainda nos deixou ensaios e textos biográficos e uma coleção de romances que está por merecer novas leituras e reavaliações, como O Anjo, Calunga e Guerra dentro do Beco. E não podemos menosprezar o namoro com tintas e pincéis, que rendeu belos quadros, hoje espalhados por todo lado, e o trabalho com as colagens, reconhecido, hoje, como pioneiro no Brasil. No entanto, tendo participado da brilhante geração literária que praticamente definiu nossa identidade como nação, o poeta alagoano jamais alcançou, na posteridade, o lugar merecido.
Sempre me pergunto por que sua obra, tão cultuada nas rodas literárias daqui e do exterior, nunca conseguiu conquistar verdadeiramente o coração dos brasileiros, sofrendo entre nós largos períodos de ostracismo. Quantas escolas no Brasil adotam a leitura de Jorge de Lima em sala de aula? Esta seria uma das principais causas, mas especialistas apontam outras: que ele foi cristão num meio intelectual dominado por ateus; que o surrealismo nunca vingou no Brasil; que ele era um poeta difícil de ler.


Recorro a um texto de Paulo Ronai, Encontro com a poesia de Jorge de Lima, escrito nos anos 1950, para tentar entender como o escritor alagoano se tornou tão distante da própria obra. “Parecia-me quase impossível que o mesmo poeta escrevesse poemas tão diferentes como Essa negra Fulô e Mira-Celi”, diz o crítico, para depois lamentar: “Pelo que vejo, Jorge de Lima ficou, para os antologistas, como um poeta folclórico do Nordeste. Talvez pensem que de duas personalidades de um poeta só uma pode ser verdadeira e, devendo optar, escolham a do cantor do Nordeste.”.
Pois, de uns anos pra cá, a sociedade literária passou a perceber a obra de Jorge de Lima de outra maneira. Hoje, os ensaístas preferem mergulhar nas águas profundas de Invenção de Orfeu, o último e enigmático livro do mestre, na esperança de trazer à tona alguma pérola rara. Mas, quem pode condená-los por ir à foz e não à fonte? A meu ver, a fase modernista, embora bastante estudada décadas atrás, merece um novo olhar, mais distanciado e contemporâneo, pois configura a melhor porta de entrada para a obra do poeta, cuja extensão toca tantos extremos.
Em cada momento de sua trajetória humana, Jorge procurou corresponder ao ideal de poeta que imaginara para si. O romancista francês Georges Bernanos reconhecia no grande amigo alagoano a aura de poesia em estado puro: “Não sei como exprimir o que penso de você. Parece-me que Deus o ama”. E, em outra carta: “Encontrei em você um poeta completo. Lendo-o, eu sinto a sua pessoa ao natural, e aberta por suas próprias irradiações. Lendo poetas como você, sentimos realmente o mistério da poesia, sua linguagem nova, sua mensagem de ontem e de hoje, cheia de profecias e antecipação, sobretudo plena de paixão”. Bernanos observa que a vida contemporânea, com seus fait divers, rouba dos poetas o interesse pela contemplação e corrompe a integridade de suas mensagens, transformando a poesia, muitas vezes, em anedota: “Há na expressão do homem interior, pelo contrário, uma agitação oceânica, uma agonia de perfeição que é um caminho sem fim da criatura visando à eternidade”. Pois era neste modelo de poeta que o católico Jorge de Lima se espelhava, muito diferente daquele outro tipo, identificado à figura de Vinicius de Moraes, que Drummond dizia invejar. Para Jorge, vida de poeta tinha a ver com ascetismo, propósito e transcendência, não com boemia, mulheres e libertinagens.
A poesia é muitos caminhos. Podemos percorrê-la em versos curtos ou longos, utilizar palavras concretas ou abstratas, abordar temas profundos ou triviais. Do poema-piada ao surrealismo, tudo pode em poesia. Por isso não acredito no cotejo de obras literárias, a não ser como devaneio epistolar, porque, no fundo, a luta de todo poeta é para se ombrear consigo mesmo, buscando se superar a cada verso. Portanto, quando afirmo que Jorge de Lima é o poeta mais representativo da nossa cultura, quero dizer apenas que ele reúne um conjunto de características que, somadas e subtraídas, resultam numa obra incomum, com significados e significantes que o colocam numa posição privilegiada na literatura brasileira.
Gosto da tese que me foi apresentada por César Leal, numa das poucas ocasiões em que nos encontramos: “Todo jovem escritor busca um modelo literário em que se espelhar, com o intuito de, um dia, ultrapassá-lo; mas os que escolhem Jorge logo descobrem ser impossível alcançar aquelas alturas, e passam a odiá-lo e a ignorá-lo”. Relendo agora o artigo Universalidade de Jorge de Lima, do saudoso poeta e crítico pernambucano, percebo que ele resumiu, com mais propriedade e muito menos palavras, tudo o que eu disse acima: “Se alguém me indagasse qual seria o poeta mais representativo da moderna poesia brasileira, creio que eu mencionaria primeiro Carlos Drummond de Andrade, ainda que Manuel Bandeira também o seja, ao lado de outros cuja consciência moderna lhes assegura uma posição de significativa relevância. Mas a expressão poética em nenhum deles alcança uma dimensão intelectual de fronteiras tão extensas quanto em Jorge de Lima. Acredito que sua poesia é tão importante quanto à de Fernando Pessoa e, seguramente, igual à dos maiores poetas antigos de nossa língua, inclusive Camões”.
Ainda na década de 1950, Paulo Rónai já mencionara por alto a maior das semelhanças entre Jorge de Lima e Fernando Pessoa. No artigo mencionado no início deste texto, o crítico afirmava: “Quando conheci as várias personalidades desentranhadas de Fernando Pessoa pensei em Jorge de Lima, e compreendi melhor a possibilidade da coexistência num mesmo artista de dois estilos e ritmos heterogêneos”.
Ao compararmos Jorge e Pessoa, de fato, percebemos que ambos, cada qual a seu modo, conseguiram a proeza de fazer, com suas obras, uma literatura inteira. Mas desde já se faz necessário apontar diferenças fundamentais entre eles, para além das origens e da localização geográfica.
Lima era católico fervoroso; Pessoa, ateu convicto e anticlerical. Fernando preferiu o celibato como forma de se dedicar integralmente à sua obra; Jorge casou-se e teve filhos, o que jamais afetou sua capacidade de trabalho. O brasileiro publicou praticamente tudo que escreveu e teve bastante reconhecimento em vida, tanto na literatura quanto na medicina; o português ganhava a vida com dificuldade, escrevendo e traduzindo cartas comerciais em francês e em inglês para diversos escritórios da Baixa, e só conseguiu publicar, em vida, um único livro em português, Mensagem. E, embora gozasse da admiração de seus pares, como o pessoal da Revista Presença, responsável pela publicação de dezenas de seus poemas, Pessoa era quase um anônimo para os leigos em literatura.
A influência de Walt Whitman, pioneiro do verso livre, é patente nos versos de Alberto Caeiro e na fase modernista de Jorge, mas, enquanto Pessoa antecipou o modernismo em Portugal, Jorge de Lima aderiu tardiamente ao movimento no Brasil. E se o poeta português foi moderno ao trazer para primeiro plano o homem do século XX com suas angústias, mesquinharias e ambiguidades, o brasileiro foi moderno ao revelar um Brasil imenso, diverso, encantatório, negro, mestiço, miserável, trágico, mítico e apocalíptico até então praticamente ignorado a nível nacional.
A se notar, ainda, que o poeta português não tinha apetite ou aptidão – nem, talvez, organização mental – para escrever romances, deixando escritos, em prosa ficcional, apenas os fragmentos do Livro do desassossego e alguns contos. Jorge de Lima, ao contrário, escrevia narrativas longas com a maior naturalidade. Estabelecidas tais diferenças, passemos a algumas coincidências entre os poetas mais intrigantes da Língua Portuguesa no Século XX:
1 – Pessoa desenvolveu uma linguagem para cada um de seus heterônimos; da mesma forma, porém sem lançar mão do recurso da heteronímia, Jorge de Lima começou como parnasiano, tornou-se modernista, regionalista, escreveu poesia social, enveredou pelo misticismo religioso, daí ao surrealismo e encerrou a obra reunindo todas essas experiências em duas obras definitivas, o Livro de sonetos e Invenção de Orfeu. Sem ter conhecido o poeta português, Jorge seguiu à risca o conselho de Ricardo Reis, um dos heterônimos de Fernando Pessoa: “Para ser grande, sê inteiro”. Jorge escreveu simultaneamente diversos livros que, às vezes, tinham temáticas e linguagens opostas. Exemplo? Em 1934 publicou o romance surrealista O Anjo; no ano seguinte, o romance social Calunga; e entre um e outro, os Poemas escolhidos. É do mesmo período o místico A túnica inconsúltil. Ou seja, livros completamente diferentes escritos e publicados no mesmo espaço de tempo!
2 – O português, nascido em 1888, e o brasileiro, de 1893, descobriram, muito cedo, o dom da poesia. Eles escreveram seus primeiros poemas mais ou menos na mesma idade, por volta dos sete anos. De Fernando, À minha querida mamã: “Eis-me aqui em Portugal / Nas terras onde eu nasci. / Por muito que goste delas / Ainda gosto mais de ti”. O primeiro poema de Jorge de Lima é endereçado ao pai, e também encerra uma escolha – neste caso, entre a escola formal e a escola da vida: “Eu queria saber versos / como o meu amigo Lau / nunca vi versos mais belos / como ele sabe lá. / Trocava até meu carneiro / meu velocípede sim / sem saber seus versos, meu Pai, / o que será de mim? / Meu pai, me bote na escola do meu velho amigo Lau. / Quero aprender com ele versos / e não be-a-bá”. Nestes versos inaugurais encontramos as vigas mestras das obras desses dois gigantes: assim como mãe e pátria foram os polos mais marcantes da vida de Pessoa, não se pode pensar em Jorge de Lima sem levar em conta sua formação simultaneamente popular e erudita, cujas representações máximas são o poema Essa Negra Fulô e o livro Invenção de Orfeu.
3 – A escrita automática, que para muitos está associada à mediunidade, parece ser uma das explicações plausíveis para entender como ambos conseguiram escrever tanto em tão pouco tempo. Jorge, que trabalhava como médico, mantinha uma rotina espartana e sacrificada, dormindo tarde e acordando por volta das quatro da manhã. Diz-se que ele vivia alheado, criava a qualquer hora, escrevia nas receitas e notas fiscais, aproveitando os percursos de bonde, as lacunas de uma conversa, o silêncio que antecede o sono, o rastro dos sonhos. Fernando Pessoa escrevia durante o dia, nos cafés e demais ambientes que frequentava, e também nas madrugadas. A partir de dado momento, sua mão deslizava com tal ligeireza sobre as folhas de papel que muitos de seus poemas ainda hoje não foram completamente decifrados.
4 – Em determinadas fases de suas vidas, ambos acalentaram sonhos de riqueza e fracassaram fragorosamente. Fernando abriu, em 1907, a tipografia Íbis, que mal chegou a funcionar, e, em 1921, a editora Olisipo, de desastrosos resultados comerciais. Além disso, criou inventos que, se deram certo, como o carrilhão da máquina de escrever e o aerograma, jamais reverteram para ele sequer um níquel. Jorge se aventurou em vários empreendimentos farmacêuticos e chegou a inventar cerca de dez remédios para todo tipo de enfermidade.
5 – Apesar de terem deixado vasta obra, Jorge e Fernando escreveram poucos poemas de amor. No primeiro, o erotismo e a sensualidade das mulheres são geralmente associados a negras e mestiças, reforçando, talvez por conveniência religiosa, alguns estereótipos culturais. Quanto ao Pessoa, creio que, mesmo no curto período em que namorou Ofélia, jamais se interessou pelo tema. Discreto ao extremo – para alguns, era misógino –, ele considerava “vulgares” os casais que tornam públicas suas intimidades. De qualquer modo, os dois tinham a poesia como sacerdócio, preferindo dedicar tempo, talento e energia a questões, digamos, atemporais.
Fernando Pessoa previu, em seus jogos astrológicos, que só seria reconhecido 50 anos depois de morto, o que efetivamente acabou acontecendo. Creio que, mais cedo ou mais tarde, Jorge de Lima terá a mesma glorificação tardia – quem sabe este ano, quando comemoramos seus 130 anos de nascimento (abril) e 70 anos de morte (novembro)?
*Claufe Rodrigues é poeta, jornalista e cineasta, autor do prefácio para a nova edição do Calunga, pela editora Alfaguara.

 

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About Claufe Rodrigues

Poeta, romancista, jornalista, compositor, cineasta e produtor cultural, Claufe Rodrigues é há algumas décadas um dos principais divulgadores do nome e da obra de Jorge de Lima no Brasil. Como repórter e apresentador da TV Globo e da GloboNews, realizou diversas matérias e programas especiais sobre o escritor alagoano. O mais recente, o especial "O ateu e o místico", de dezembro de 2018, traça um paralelo sobre as vidas e obras de Jorge de Lima e Graciliano Ramos. Para a TV, o artista carioca roteirizou e codirigiu a série "Os nomes do Rosa", sobre Guimarães Rosa, e dirigiu "O poeta fingidor", sobre Fernando Pessoa, "Uma vida em linha reta", sobre Euclides da Cunha, e "O bruxo do Cosme Velho", sobre Machado de Assis, entre outros. Estreou no cinema com o longa documental "Faz sol lá sim", lançado em 2020, sobre a tradição musical em Marechal Deodoro/AL. Com 14 livros publicados, Claufe também escreveu artigos e ensaios sobre grandes escritores, como Fernando Pessoa, Clarice Lispector e Jorge de Lima. É dele o prefácio à nova edição do romance "Calunga" (Alfaguara/Cia das Letras), do escritor alagoano. Atualmente, se dedica ao projeto de adaptação de "Calunga" para o cinema.

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