Um curioso encontro – Londres, outubro de 2007
   28 de abril de 2023   │     8:09  │  3

Apesar do dia ensolarado, fazia aquele friozinho típico de outono europeu. Como a loja se situava numa via cruzando o final da comprida Sloane Street, apressei o passo. O vento forte despenteava as árvores. Levantei a gola e, descendo a longa artéria, observei os táxis pretos trafegando pela esquerda, ou melhor, andando na “mão inglesa”, com seus motoristas dignamente sentados à direita, no lugar que é o do passageiro por aqui.

Após quinze minutos de uma boa caminhada, parei diante do comércio que me interessava. Eu havia lido uma matéria falando desse famoso empório que fora fundado em 1920. O artigo dizia que a loja ofereceu uma lista de presentes para o casamento do Príncipe de Gales e da Duquesa da Cornualha, em 2005.

Vendia móveis antigos, vindos de vários países asiáticos, e curiosos objetos produzidos na Índia. Eu imaginava encontrar caixas de tabaco de madeira, redondas e pintadas à mão pelos artesãos dos arredores de Mumbai. Colecionadora compulsiva, eu já tinha 33 unidades delas espalhadas nas mesas do meu salão.

Acima da porta de entrada, encontrava-se um brasão da realeza britânica: um escudo coroado, preso entre duas figuras leoninas. Havia uma inscrição gravada em letras douradas numa placa de granito negro:

“By appointment to her majesty the Queen Elizabeth”

Isso significava que o comércio fornecia mercadorias não somente para os moradores do Palácio de Buckingham, mas também para os lordaços súditos da rainha. Imaginei preços salgados e vendedores azedos. Quase desisti, mas uma violenta lufada fez voar as folhas vermelhas, que logo se esparramaram pela calçada. Como eu precisava proteger-me da ventania, empurrei a porta do distinto estabelecimento.

Logo, um pitoresco perfume veio acariciar-me as narinas. Reconheci um cheiro típico dos produtos exóticos. Identifiquei o aroma do incenso e da madeira rara, distingui a fragrância do patchouli e dos tecidos tingidos com açafrão. O odor era bem discreto e suave. Não possuía a vulgaridade das essências de bazares.

O espaço, silencioso e aconchegante, parecia o refúgio de algum mercador transitando pela Rota de Seda. Havia pilhas de tapetes Kilim, antigos armários de remédios, com suas sessenta gavetinhas, guarda-louças chineses em laca vermelha, mantas diversas, tapeçarias bordadas com fios de prata, espelhos ricamente emoldurados. Discretamente, puxei a etiqueta presa numa almofada. Constatei que, realmente, os preços não eram acessíveis.

Por sorte, fui abordada por um vendedor afável. Alto e elegantemente vestido, possuía semblante de lorde. Percebendo meu sotaque diferenciado, perguntou qual idioma eu falava. Quando respondi que, além da minha língua materna, eu era fluente em português, o jovem

sorriu todo satisfeito. Era filho de um lisboeta casado com uma sueca. Dominando perfeitamente a fala do pai, o jovem se ofereceu para me ajudar.

Eu queria saber para que serviam certos estrambóticos utensílios. Pausadamente, o jovem me explicou todos os mistérios desses intrigantes objetos que faziam parte do cotidiano dos místicos hinduístas. Como não havia muitos clientes na loja, permiti-me perguntar várias vezes. O moço percebeu que eu não ia comprar coisa alguma, mesmo assim, continuou me explicando qual era o uso de alguns bizarros apetrechos.

Enquanto eu era atendida pelo moço amável, senti que alguém observava nossa conversa. Foi então que, virando um pouco o rosto, descobri uma mulher parada me olhando intensamente. Tinha uma tez pálida e possuía cabelos loiros, presumivelmente de nascença. Seu penteado era clássico e suas roupas sóbrias, em tons pastéis. Era uma típica britânica de meia idade.

Assim que o vendedor se despediu, pois outra cliente o abordara, a cinquentona aproximou-se de mim. Polidamente, falando um português perfeito, perguntou-me se eu era brasileira. Expliquei que, apesar de francesa, eu morava no Brasil desde 1979. Nisso, ela quis saber onde eu vivia, em que região eu me instalara. De natureza extrovertida, não vi problema algum em lhe contar dois ou três dados da minha vida pessoal.

Quando notou que eu ia sair da loja, indagou se eu tinha a tarde livre. Respondi afirmativamente. Em seguida, perguntou se poderíamos caminhar juntas, pois desejava muitíssimo falar do Brasil, o país onde ela havia estudado literatura.

Sabendo que os britânicos são reputados por fazer bom uso de discrição, a atitude da mulher era inabitual. Comedidos por natureza, os ingleses evitam fazer perguntas diretas ou indiscretas, e não costumam abordar assuntos privados com estranhos. Intrigada diante do comportamento invulgar, prontamente aceitei a solicitação. Foi assim que começou meu passeio ao lado de Bridget.

Lá fora, o tempo havia dado uma melhorada, pois o vento sumira de vez. Locomovíamo-nos a passos lentos, enquanto eu respondia a suas interrogações. Eu a seguia cegamente, pois era ela que comandava o rumo da nossa perambulação. Em determinado momento, pegou-me pelo braço e me fez atravessar a rua. Ela precisava trocar algumas palavrinhas com um casal amigo que comercializava sandálias manufaturadas nos arredores de Marrakech, lugar onde o par possuía uma fábrica empregando uma mão de obra berbere.

Em cinco minutos, já estávamos diante de uma sofisticada sapataria cuja vitrina exibia graciosas sandálias de couro cru, finamente bordadas com fios coloridos. Treinados dentro de uma tradição milenar, os artesãos do deserto haviam enfeitado os sapatos com rebuscados motivos geométricos.

Bridget foi imediatamente recebida por um senhor desdenhoso, acompanhado da sua nobre esposa. Assim que botei o olho neles, percebi estar pisando num território alienígena. A dupla era fina além da conta e sua fala soava meio pedante. E por falar em pisar num território

adverso, devo lembrar que, naquele dia, eu usava um par de tênis surrado, extremamente confortável para caminhar. Subitamente envergonhada, por conta do calçado gasto, deu-me vontade de esconder os pés debaixo do tapete persa que forrava o precioso piso de mármore.

Eu queria fugir desses sujeitos pomposos. Eu queria correr bem longe da estrangeira xereta. Acontece que Bridget me apresentara como se eu fosse uma amiga de longa data. Enquanto papeava com o casal, vez ou outra olhava para mim, sorria afetuosamente e fazia sinais com a mão, pedindo para eu pacientar.

Após dez longos minutos de conversa, Bridget finalmente se despediu e, segurando-me pelo cotovelo, puxou-me novamente para a rua. Do lado de fora, declarou que iríamos lanchar numa reputada casa de chá, a três quadras dali. O salão era amplo e a decoração, suntuosa. Sentamo-nos, frente a frente, numa mesinha para dois lugares. Uma garçonete, usando uma farda antiquada, logo veio anotar o pedido. Optamos por um chá Earl Grey, acompanhado de scones e muffins recheados com geleia de morango.

Assim que o chá nos foi servido, Bridget começou a falar, pois decidira narrar sua própria história. Eu soube que estudara na USP, onde defendeu uma tese sobre um escritor brasileiro. Não tenho certeza, mas me parece que era Graciliano Ramos. Foi nessa faculdade que conheceu Fábio, um paulistano por quem se apaixonou perdidamente. Acontece que o rapaz vinha de uma tradicional família judaica, que não aceitava casórios com anglicanos.

Depois de terminar os estudos e regressar à Inglaterra, conheceu John, casou e teve dois filhos. Administrava sua própria fábrica de móveis, para área externa, que mobiliavam os aristocráticos jardins à inglesa. Fora isso, levava um cotidiano pacato e parecia satisfeita com a própria vida. Mesmo assim, não parou de mencionar Fábio, pois o amor que sentia por ele permanecia intacto.

Com nítido entusiasmo, contou-me que o amado reapareceu depois de quinze anos. De passagem por Londres, ele havia obtido seu número de telefone, através de uma relação em comum. Combinaram de se ver naquele mesmo salão de chá, onde estávamos sentadas. Descrevendo o reencontro, havia momentos em que Bridget se emocionava demasiadamente. Nesses instantes fugazes, vi lágrimas marejando-lhe os olhos. Aproveitei o clima confidencial para relatar algumas dores de cotovelo que eu atravessara na juventude. Revelei também a forma singular como encontrei meu amado esposo.

Durante quase três horas, desenrolou-se uma situação incomum que mereceria ser filmada: instaladas numa mesma mesa, éramos duas completas estranhas trocando recordações sentimentais. O mais engraçado é que, para revelarmos segredos pessoais uma à outra, ambas usávamos a língua nativa de nossos amores sul-americanos. Graças ao uso do português, um vínculo afetivo se instalara entre mim e a desconhecida. Sem a fala lusitana, nada disso teria acontecido…

A noite cobria a cidade quando Bridget me acompanhou até meu hotel. Após trocar endereços, abraçamo-nos calorosamente. Chegamos a escrever-nos algumas cartas, mas, após certo tempo, a correspondência foi-se interrompendo aos poucos.

Recentemente, arrumando gavetas, reencontrei os envelopes com as cartas de Bridget. Mesmo não sendo uma estudiosa em grafologia, reconheço que a caligrafia alargada passa uma boa impressão e denota uma calorosa personalidade. A mão firme, que traçara as letras graúdas, pertence a uma pessoa afetuosa e generosa. Essa correspondência, guardada há mais de uma década, é o único vestígio daquele nosso curioso encontro…CHANTAL FRAZÃO

About Chantal Jeanne Lafaye Frazão

Nossa autora, Chantal Jeanne Lafaye Frazão, nasceu nos arredores de Paris, em pleno baby-boom do pós-guerra. Foi viver na capital quando tinha apenas 21 anos. Pouco depois de se mudar, a jovem cruzou o caminho de um brasileiro chamado Antônio. Assim que colocou os olhos nele, ela soube que o destino havia enfim chegado à sua porta! Em pouco tempo se apaixonaram, casaram-se e foram viver em Maceió, no ano de 1979. Chantal virou rapidamente uma alagoana, aprendeu a preparar uns quitutes nordestinos como carne de sol, feijão tropeiro ou cozido com pirão. Lançou o livro Memórias de Uma Franco-Alagoana em 2019 — obra que, nesse mesmo ano, recebeu o Prêmio Notáveis da Cultura Alagoana, na sua 16ª edição. Mais recentemente, no dia 27 de abril de 2023, Chantal entrou na ilustre Academia Alagoana de Letras, ocupando agora a cadeira 33, anteriormente ocupada pela escritora e poetisa Lyzette Lyra. Acompanhando o esposo alagoano nas suas viagens de negócios, Chantal aproveitou a vida e aprontou em NYC, Londres e outros lugares onde sua curiosidade a fez vivenciar inúmeras aventuras, que soube transfigurar em histórias, através das quais o narrador pega o leitor pela mão e o leva para passear em variegas perambulações pelo mundo afora...

COMENTÁRIOS
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  1. Licia Gatto Santa Rita de Melo

    Aguardando ansiosa seu próximo livro. É uma delícia ler seus escritos. Você é uma escritora muito especial e talentosa. Parabéns!

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    1. Chantal Frazão

      Fico muito feliz! Te mando um abraço. Estou viajando, mas na minha volta marcaremos o nosso encontro! Beijos

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