A MORTE INCONCLUSA
   15 de maio de 2023   │     10:45  │  1

DANILO VIVIA ACUADO. Bastava apontar no vão da porta da sala de aula e já começavam os arremedos, as chacotas e as gargalhadas. Imitavam sua fala emperrada, sua figura fornida, seu ventre expandido, seus gestos remanchados, seu andar banzeiro e pesaroso. Também não o poupavam pela língua maciça, sempre encompridada por entre os lábios e ameaçada pelos amolados dentes da frente. Tampouco o rosto plano, amplo e polpudo, o nariz e os olhos miúdos, as orelhas exíguas e abauladas.


Chegavam ao ponto de gastar o recreio para furtivas escrevinhações zombeteiras na lousa, o mais das vezes na companhia da figura mal traçada de um leitão roliço cuja cabeça dava lugar a uma desastrada caricatura que sugeria Danilo.
A Professora Albertina danava-se. Eu bem que avisei, repetia com a cara amarrada. Tinha sido contra a sua vontade, desde o começo, que ele havia sido matriculado no Grupo Escolar Gabino Besouro. Embora fosse, por aqueles dias, a mais acreditada das escolas públicas em Penedo, ela emperrava na teima de que o ambiente não era propício. Nem mesmo havia professores com preparo para cuidar de crianças como ele.
E vai crescer sem estudar? Perguntaram. A emenda pode sair pior do que o soneto, respondeu ela. Caso o menino se sentisse deslocado ou até hostilizado pelos colegas, ninguém podia antecipar o estrago que já estaria instalado e na certa duraria para sempre.
Danilo, porém, somente sorria um sorriso desbotado. Um sorriso (por assim dizer) que beirava o fictício. Era como se visse nos gracejos uma saudação cordial, nas gargalhadas um ruidoso discurso de boas-vindas, nos debuxos e dizeres no quadro-negro uma proclamação de afeto. Pelo mais certo, porém, nada disso.
Tal qual um pássaro conformado com a clausura da gaiola, Danilo não se dava conta do seu cativeiro no ventre de uma consciência sitiada. E bem por isso nem distinguia o franco do fingido, o verdadeiro do falso. Enxergava o mundo cá fora com o mesmo alheamento de um peixe arco-iris (tão frágil e sereno quanto ele), ao espreitar através da pele de vidro que acastela o aquário.
Dizia-se que assim ficara por causa do parto atribulado que o trouxera ao fervor do sol e à placidez da lua. Para começar, nem estava pronto e acabado. Mal passara dos sete meses o tempo que teve para desabrochar e tomar corpo e forma. Além do mais, um impremeditável revés: o tal duto que o provia, enquanto inquilino na barriga da mãe, atravessou-se na porteira do seu abrigo provisório. Não havia, pois, como não atrapalhar a transição que a natureza encomenda (desde que o tutorial seja seguido à risca) a tudo o que é de nascituro. E ele, com os seus instintivos arremessos apressados, acabou por achatá-lo. O que deu em lhe faltar o ar que ainda não podia nem sabia respirar.
Quando afinal arrancado à força veio inanimado: a pele colorida por um azul sinistro, os olhos vidrados, a boca aberta de peixe arrebatado da hospitalidade das águas. Não houve choro. Não havia vida. Até que, algum tempo depois, foi a custo reanimado. Tinha sentido dizer que não morreu por um triz.
Para alguns tirados a mais entendidos, contudo, tal juízo não era de ser tomado ao pé da letra. Seria mais remota a causa daquela mímica desarmônica, daquele distraimento crônico, daquela língua que abortava a fala. Apontaria, segundo eles, para um desacerto da natureza, antes ou durante a gestação. Um acidente genético, bocejou o sonâmbulo Professor Coruja. Um estigma herdado dos pais.
Para as devotas (movidas pela empáfia dos que se autonomeiam justos e por isso mesmo predestinados à bem-aventurança) tratava-se de um castigo sentenciado pelo compassivo tribunal com assento no Jardim do Éden. Pelo que elas mesmas professavam, somente o Altíssimo teria poder para julgar. Mas já estavam a fazer seus julgamentos. Deus é sempre justo, mesmo quando às vezes pode parecer cruel, salmodiava uma delas, logo a que se confessava a mais intrigada da hipocrisia e da soberba.

Os diagnósticos ansiosos das eleitas e do Professor Coruja (que não se chamava Coruja e muito menos era professor) tempestuou o extremado desvelo da mãe de Danilo, de nome Assunta Rosa. Ou desenterrou uma mágoa ou um remorso que ela se negava a escutar… uma assombração que bradava, dia após dia, uma noite atrás da outra, em algum recanto da sua mente, enquanto se ensopava, com lágrimas vaporosas, a face intangível da sua alma, que vinha a ser a sua réplica incorpórea.
Bem que tinha sido prevenida de que primos carnais arriscam gerar filhos com certos desarranjos. Não dera ouvidos. A paixão não se deixa abater pelos infortúnios prováveis; muito menos pelas desventuras não mais do que incertamente possíveis.
Ela e Lourenço apostaram na sorte e foi talvez por isso que Danilo havia aportado assim em suas vidas. Ele não era, para ela, uma extravagância e muito menos um fardo a carregar. Amamentava pelo filho um amor de mãe plenificado numa devoção que se avizinhava da idolatria. Fiava que ele, no seu modo singular de ser, era uma criatura desprovida de malícia, uma fonte prodigiosa de pureza, afeto e generosidade. Um anjo encarnado. Sentia-se destruída, contudo, ao vê-lo baratinado, quando agredido pelas caçoadas e atraiçoado pela piedade fingida.
Ser diferente, por qualquer razão que seja, é só por só ser diferente. Não vem a dizer desnatural e, menos ainda, burlesco e destino de galhofa, piedade e segregação. A galhofa ultraja; a piedade humilha; a segregação flagela e amotina.
Assunta Rosa estava descaída, embora mal tivesse passado dos cinquenta. Talvez corroída pelo desalento. Talvez estragada pelo desmazelo. Quem agora a olhasse veria uma mulher desprovida do mais minúsculo dos encantos. Diria ser fake o relato de que, na sua mocidade, invocava a reencarnação de Helena, a formosa filha adúltera do Zeus-cisne e amásia do príncipe troiano.
Pós parir e inteirar o resguardo, porém, toda aquela beleza teria começado a murchar, até que se desmanchou de uma vez por todas, sem que houvesse remédio a receitar. O que se aligeirou depois que Lourenço a abandonou sem muita explicação. Alegou que não mais aguentava conviver com o filho do jeito que era. Drama ou não… pretextou que andava a ponto de enlouquecer. O que não disse foi que estava de cabeça inchada por uma sirigaita que mal completara a adolescência.
O que não se podia negar era que Assunta Rosa, com o passar dos anos a empilhar desgostos, ganhara peitos e ventre descomunais e pendurados, braços pelancudos, ancas enormes e um rosto escavacado por memórias da catapora, em que era estampado um ar de desengano. Um desconsolo hostil que lembrava o desmoronamento que os artistas coloram na face da imagem da Nossa Senhora das Dores. Basta recordar Maria de Nazaré nas Procissões do Encontro, a encimar o andor carregado por Irmãos das Almas, todos vaidosamente inseridos em seus hábitos tingidos de um roxo desmaiado.
O que não sintonizava com o alvoroço e com a língua afiada que Assunta Rosa incorporou aos poucos. Reclamava de tudo e de todos. Não escolhia lugar nem filtrava palavras para vomitar a bile que estocava. O que lhe rendeu a fama de linguaruda e desbocada. Aqui ou ali enchia o peito para se gabar: Se há uma coisa que não faço é levar desaforo pra casa. Mas a verdade era que não precisava de desaforo para entrar em erupção. Um olhar atravessado, um sorriso desconfiado, um gesto fora de hora, já eram motivos de sobra.
Daí não ter causado surpresa quando escrachou as beatas intrometidas e o enigmático Professor Coruja. Quanto a elas, vomitou, pela frente e pelas costas, todos os podres que ouviu dizer ou inventou. Pegadas de surpresa ficaram sem ação. Jamais imaginaram que teriam escancaradas as imposturas com que esperavam ludibriar o Criador, embora garantissem que onipresente e onisciente.
Quanto ao tomista tardio, jogou-lhe na cara tudo que se possa imaginar de insulto. Ele a escutou calado, dando o escutado por não ouvido. Mas ela não se deu por satisfeita. Espalhou que o desafeto, além de desparafusado e pedófilo, virava lobisomem nas noites de lua cheia.

Eram perdidos os sermões e os esperneios da Professora Albertina. Sem qualquer intenção de lhe faltar com o respeito, é justo abonar que até se excedia nas admoestações, nas recriminações e nas penitências que receitava aos alunos debochados e renitentes. No caso de Odulfo Madureira, um magricela de pele branquicenta, rosto sardento, cínico de marca maior e o mais fogoso dos trocistas, ela se esmerou mais do que nunca. Obrigou-o a ficar de joelhos, por duas horas seguidas, sem direito a tirar os olhos da parede encardida da sala da Diretoria.
Mas não tinha jeito que desse jeito. Até parecia que quanto mais a meninada era repreendida e castigada mais afoita ficava. Assim como se com isso todos desagravassem cada colega penalizado. O que encaminhava para aquele tal de impulso solidarista que recomenda, aos membros de uma corporação, que se amparem uns aos outros. Ainda que para esconder escorregos vergonhosos e mascarar os pecados mais repulsivos. Cada um de olho numa retribuição futura e de igual condescendência, no caso de vir a ser flagrado em alguma traquinagem. Isto é: proteger para poder cobrar ser protegido.
A única saída estava em tirar Danilo da escola. Seria o melhor para ele e para todo mundo. Assunta Rosa ficou subindo pelas paredes. A tentação era de esganar cada um daqueles moleques desalmados. Uma gentalha sem escrúpulos. Mas terminou engolindo a seco quando a Professora Albertina se comprometeu a dar aulas particulares ao menino, todas as tardes, na casa dela. E não custaria um tostão a ninguém.
Melhor, ainda, que tanto Danilo como a Professora Albertina moravam na Rua da Penha. Uma morada não distava desde a outra mais do que duzentos metros. Era uma reta só. Nem precisava que Assunta Rosa o acompanhasse nas idas nem nas vindas. Ele podia, muito bem, ir e regressar sozinho, sem risco de se perder no meio do caminho.
E foi assim se passou. E é bom que se diga que Danilo, embora a trancos e barrancos, aprendeu a soletrar algumas palavras, a fazer contas miúdas de somar e subtrair, a garatujar um faz de conta de assinatura.

Não ficou por aí. Bem defronte do Grupo Escolar Gabino Besouro e a uma quadra da casa da Professora Albertina, ficava o prédio em que abrigado o ateliê de um santeiro muito afamado em Penedo, nas redondezas e por aí afora. Chamava-se Antônio da Silva Lisboa, mais conhecido como Mestre Lisboa.
Era um homem dos seus setenta e poucos anos mas que se diria não ter passado dos sessenta. Tinha a pele tostada, cabelos crespos agarrados ao casco da cabeça, rosto ovalado, olhar inquisitivo, sorriso pálido, barba sempre por fazer. Não era de rejeitar uma prosa mas não era daqueles que não toleram escutar.
O ateliê não passava de dois cômodos concisos e agregados pelo que poderia ser uma porta de alcova. Estavam atulhados de imagens de santos de tudo o que é devoção: algumas esperançosas de que seriam afinal aprontadas e despachadas para santuários íntimos ou altares e nichos em igrejas dali ou dalhures; outras mais, confiantes no implante de próteses de uma mão amputada, um pé sumido, um olho extraviado, uma cabeça destroncada e por aí vai.
Ainda havia outras tantas que se apegavam à promessa de que, mais cedo ou mais tarde, seriam encarnadas. Recobrariam o rosado das maçãs da face, o fausto das túnicas e dos mantos, a imponência das peanhas, a precisão nas cores dos cabelos. Além disso, conforme o caso, recuperariam a insinuação das barbas patriarcais, o lampejo nas tonsuras, o alarde dos báculos e das mitras. Pode-se perguntar pela fulgência do ouro e da prata das auréolas, coroas e resplendores. Quanto a isso, porém, que dissessem os aprendizes, já que empreita trivial que só tem a ver com limpar e brunir.
Danilo ficou fascinado com o sossego com que o santeiro criava aqueles ícones em toras de cedro. Passou a acreditar que as esculturas já lá estavam desde sempre embutidas, no aguardo impaciente do artista que as extrairia.
Não demorou e Danilo começou a aventurar o cinzel em sobras de madeira condenadas ao descarte. De princípio não passou de ensaios toscos. Mais um pouco tempo, contudo, era o santeiro a se reconhecer boquiaberto com o aprumo e a espontaneidade com que o menino talhava e esculpia bochechudos anjos barrocos e taumaturgos com fã-clubes mais povoados, afora pastores, reis e cordeiros que iriam atuar em presépios.
Não durou muito, contudo, o apego de Danilo à escultura de personagens corriqueiros em altares, oratórios e charolas. De uma hora para a outra desencantou-se e deu começos a exercícios de estímulo profano. Mestre Lisboa estranhou mas não fazia bico quando via Danilo passar horas e mais horas a folhear um livro espesso, de capa cartonada, recheado de fotografias de obras de escultores não esquecidos pela história. As que mais o deixavam maravilhado, porém, eram as de Auguste Rodin e Camille Claudel. Imprimiam-lhe a sensação de que aqueles corpos eram de carne e osso e não simplesmente fundidos na indiferença do bronze ou lavrados na fria impassividade do mármore. Chegou mesmo a modelar, em terracota, cópias nanicas d` O Torso de Adèle e d` A Valsa.
Mestre Lisboa por vezes duvidava do que via. Mas a realidade estava ali, bem na frente dele, isenta de artimanhas cosméticas e de arranjos cenográficos: a verdade explícita, contemporânea, ao vivo e a cores. Não teve como não se convencer de que havia um prodígio por trás daquela figura miúda e volumosa, rosto esférico, olhos amendoados e espremidos, mãos e dedos breves, sobrancelhas associadas no topo do nariz, uma bossa excêntrica escanchada no cachaço.
O consórcio entre eles, no entanto, durou muito menos tempo do que seria de se desejar. Cerca de um ano mais tarde o santeiro Antônio da Silva Lisboa foi atropelado por um vazamento de sangue em algum escaninho do cérebro. E lá se deu que a boca entronchou, os braços e as mãos perderam a serventia, as pernas entrevaram, a fala ficou sumida e pastosa. Nunca mais se pôs de pé.
Que Deus me perdoe, tartamudeou com uma voz fantasmagórica. Melhor tivesse morrido. O que desatou cruz-credo em algumas almas piedosas, assustadas com o quanto tal blasfêmia lhes espancava a fé. Um sacrilégio que, por outro lado, fazia do santeiro um ímpio, pelo que já lhe estaria reservado um aposento incandescente nos socavões do Inferno.
A partir daí a vocação artística de Danilo não somente desbotou… derreteu-se. Se antes ainda articulava as poucas frases que conseguia gaguejar, naufragou numa mudez de granito. Abandonou as aulas particulares da Professora Albertina, desertou o gato que sempre teve como companheiro inseparável, varreu da memória a terracota, as toras de madeira de lei e os cinzéis. Até mesmo se rebelou contra a insistência de Assunta Rosa para que a acompanhasse às feiras semanais no Mercado Púbico e no Pavilhão da Farinha. Não bastasse, fez do seu quarto de dormir uma inédita sepultura.
Nunca mais regressou aos dias de improvável lucidez. O eclipse do santeiro decretou-lhe uma morte inconclusa.

Alcântara (Lisboa), maio de 2023

About Carlos Mero

CARLOS MÉRO nasceu em Penedo (1949). Membro da Academia Alagoana de Letras, do IHGAL e da Confraria Queirosiana (PORT.). Já integrou o Comité Scientifique da Revue REFLEXOS - Université Toulouse Jean Jaurès – FR.). Principais publicações: O Beco das Sete Facadas e outras estórias alucinadas (Contos). São Paulo: Marco Zero. 2005 - A lua de fel do casal Valhamor (Conto). Revue L’Ordinaire Latino-Americain, nº 212/2010, Université de Toulouse II – Le Mirail. - O amargo regresso da desesperança. Revue Caravelle nº 96/2011 - Université de Toulouse II – Le Mirail - Travessias (Contos - coautora: Cristina Duarte-Simões). Maceió: Viva. 2013 - Graciliano Ramos: Um monde de peines. (Depoimento). Lille (Fr): The BookEdition. 2015 - A deserção de Maíra (Novela), in Inventando Maíra S. Paulo: Scortecci. 2016 - O chocalho da cascavel (Contos). S. Paulo: Scortecci. 2016 - Um gosto de mulher (Poesia). S. Paulo: Scortecci. 2018 (2ª edição) - Dias assombrados em Roma (Memórias). S. Paulo: Scortecci. 2ª ed. 2020 - Contos covidianos. S. Paulo: Scortecci. 1ª e 2ª eds. 2021); Os dois melros (Conto). Rev. de Portugal nº 18/2021; Eça de Queirós e Graciliano Ramos: Diálogo criativo (Palestra: Vila Nova de Gaia - 15.03.2022). Rev. de Portugal nº 19/2022.

COMENTÁRIOS
1

A área de comentários visa promover um debate sobre o assunto tratado na matéria. Comentários com tons ofensivos, preconceituosos e que que firam a ética e a moral não serão liberados.

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião do blogueiro.

  1. chantal frazão

    Caro Carlos
    Que prazer ler seu texto. Consegui visualizar o coitado do Danilo, com sua figura fornida, seu ventre expandido, suas orelhas exíguas e abauladas! Tadinho, tive pena do coitado sofrendo bullying bem antes dessa palavra ser conhecida pras bandas de cá… Um forte abraço!

    Reply

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *