Travessia
   21 de julho de 2023   │     3:39  │  0

Entra de um pulo na boleia do caminhão, a face afogueada pela pressa.
Tem certeza que é isso que você quer deixar tudo e ir para a cidade grande?
Balançou a cabeça assertiva –O senhor sabe faz tempo penso ir embora; quando me disse que Arminda sua esposa me deixou ficar alguns dias em sua casa, não tive duvidas , vou para Bahia .– Vão pensar que fugiu comigo.
—Deixe pensar, nem ligo. Sigo o que meu coração pede há muito tempo. Vivo bem e feliz com Aurélio, um homem bom que gosta de mim, mas tenho uma ânsia, um desassossego, um aperto no peito, como se alguma coisa me chamasse para algum lugar distante.


—-Amélia você é que sabe de sua vida, apenas perguntei por que não entendo.
Calam-se. A estrada passa silenciosa e escura; atravessa os coqueirais da praia se mete no asfalto. Pequenas cidades se sucedem. O tempo passa. Ela cochila. Florisvaldo balança a cabeça pensando: quem entende mulher? Deu-lhe pena do homem que ficou só. Pensou em Arminda, como seria sua vida se ela também tivesse o desassossego de Amélia.
—Esconjuro. Sua esposa é mulher quieta, dona de casa, cuidadora dos filhos e dele que é também é um menino em determinadas situações, se não fosse a sabedoria da mulher estaria perdido.
O tempo passa, a estrada é comprida.
. — Daqui a umas duas horas chegaremos.
—-Quanto tempo já passou?
Quase 7 horas. Estamos perto.
Agora está aflita. Pensa no homem que deixou. O coração doe, também gosta dele, mas o que a chama é mais forte, quase premente, como talvez a dor de um filho para nascer… Não sabe explicar, não tem muita leitura…
O caminhão parou na porta de uma casa pequena. A buzina acorda Arminda que levanta e os recebe com alegria. Amélia acanhada fala com a dona da casa, vê os meninos, José Carlos, Amanda, seu coração se alegra; sempre foi louca por crianças; talvez por não ter podido ser criança por muito tempo. A mãe morrera de parto, a avó tomou conta dela desde recém-nascida, o pai arranjou outra mulher, teve filhos e mal podia sustentar os de casa, quanto mais Amélia que nem estava ali junto com as outras crianças.
Tanta lembrança na cabeça, algumas ruins outras nem tanto, nenhuma alegre; a sombra da fome a rondar. Balança a cabeça como se o gesto lhe destruísse as memórias. Voltou à sala pequena, arrumada, limpa. A televisão é a atração. Mulheres bem vestidas, lindas e felizes; numa novela qualquer. Olha tudo como se estivesse sonhando. Tinha realmente deixado a pequena cidade, Aurélio, o armazém, a casinha a beira mar?
Arminda perguntou o que ela pretendia, sobre sua família, um interrogatório como só uma mulher desconfiada faz. Tranquilizou-se, aquela moça não tinha segundas intenções com seu marido; era simples, só no mundo.
— Anunciou amanhã levo você no terreiro de mãe Adalgisa, quero que ela faça uma consulta para você, jogue os búzios. Precisa ter uma direção, um conselho de nossos guias. Amélia ficou surpresa:
—Que guias?
– Os Orixás seus protetores.
Arrumou-se no quarto das crianças para dormir. Acordou cedo. Cadê o barulho das ondas, cadê o rebuliço dos coqueiros, o grito de gaivotas?
Sentou na cama, espreguiçou-se. Ouviu barulho na cozinha, foi ajudar Arminda. A conversa das duas foi animada, enquanto Amélia ajudava fazendo cuscuz, Arminda falava de seu casamento, de como se davam bem, e da alegria de ter os meninos saudáveis. Aconselhou- a cuidado:- -cidade grande tem muito vigarista, bandido mesmo, não dê conversa a desconhecidos.
Ás três horas chegaram ao terreiro de mãe Adalgiza. Senhora magrinha e esmirrada, que abençoou Arminda. Dirigiu-se a Amélia elogiando a beleza da moça e seus olhos verdes rasgados e misteriosos. Sentaram-se no chão junto à urupema dos búzios. A ialorixá jogou uma, duas, três vezes e permaneceu calada. Amélia tinha uma expressão de espanto:
Alguma coisa ruim?
—Adalgiza balançou a cabeça em negação— que nada menina!
— É tudo tão claro, afortunado que diria você nasceu para ser princesa.
–Princesa? A senhora deve estar enganada.
Adalgisa levantou-se foi ao Peji, bateu com a cabeça no chão pedindo esclarecimento. Voltou aos búzios, mesma resposta. Muito seria continuou:
—Amélia seu destino não está aqui. Você vai viver fora do Brasil, muito longe e muito feliz, quase uma princesa. Ouça o que vou lhe dizer:
—Não procure emprego de domestica, vá para as lojas mais caras e especiais da cidade, passeie entre vitrines. Vá bem vestida.
Como ir bem vestida? Ela que tinha somente roupas de algodão simples do armazém de Aurélio. No outro dia Florisvaldo a deixou no shopping.
A principio ficou atarantada. Acalmou-se. Foi andando, vendo vitrines. Quanta coisa linda, meu Deus! Quanto vestidos brilhantes, sapatos de saltos enormes, uma profusão de cores. Em meio a tanta beleza um vestido chamou sua atenção. Não havia brilho, era a seda esvoaçante., Sapatos e bolsas lindas, aquelas peças sim eram de uma beleza que não conseguia tirar os olhos. Entrou devagar observando. Uma vendedora ríspida falou: São muito caros.
—-São lindos!
Uma senhora meio escondida a observava, acercou-se dela pegando-a pelo braço.
— venha aqui, ao meu escritório.
Maria Adelaide era o que as crônicas sociais apregoavam:” uma locomotiva”, mulher de visão, elegância e bom gosto. Bem nascida, bem casada, refinada, transita entre as melhores casas de moda do Brasil, França e Nova York, viu em Amélia a respostas para suas preces a todos os santos e orixás da Bahia. Filha de Iemanjá, traz no colo uma linda sereia em ouro maciço, pingente que mandou fazer em casa de ourivesaria famosa, pendurado em pesada corrente também de ouro. Joia única. Havia dois meses procurava um rosto novo, alguém especial e desconhecido para ser atração do desfile de seu amigo particular, costureiro famoso do Sul dos pais. Viu em Amélia a resposta para seus desejos, claro, se a moça se empenhasse em absorver todos os ensinamentos em três meses.
Sentou-a ao seu lado no sofá e começou interrogatório mais severo do que o que fora submetida por Arminda. Deu-se por satisfeita e mandou-a vestir um daqueles vestidos que tanto admirara. Quando saiu do provador estava radiante.
Muito bem Maria Adelaide disse batendo palmas, como pensava , estou certa.
– Agora só depende de você, de sua vontade se trabalhar com afinco e garra. Será a mais linda e melhor modelo do país.
Não sabia o que dizer, inibida andou pelo escritório, sempre seguindo ordens de Maria Adelaide, que a mandou tirar o vestido e voltar a conversar sobre o que esperava dela.
A empresária acertou quanto lhe apagaria, o que ela precisava fazer. Contratou professor de Português, etiqueta e conhecimentos gerais. Levou-a seu cabelereiro particular e manicure. Quando terminou tudo era tarde. Ficou aflita, como voltaria? O motorista particular da agora sua patroa levou-a até o bairro popular onde mora provisoriamente. Seu Manoel era conversador e no caminho deu-lhe algumas instruções importantes: ‘Não se atrase nem faça corpo mole, se for esperta estará feita na vida; nunca dona Maria Adelaide mandou levar funcionaria em casa.
Durante três meses dedicou aos estudos, Maria Adelaide supervisionava a pupila de perto Completou a educação levando-a a eventos, restaurantes finos, Lapidando a gema em estado bruto que resolveu transformar.
Em S Paulo na “Maison L. Laven, desfilou várias criações do estilista.. A plateia aplaudiu entusiasmada a coleção. Ela foi o assunto do momento. Jornalistas a cercavam e a Maria Adelaide. A mentora criara uma história verossímil e romântica: Nasceu no Nordeste , de pai francês embarcadiço. A mãe morreu de parto. Foi criada pela avó. O nome Amélia Labard vem do pai, que apareceu uma única vez e registrou a menina. Tudo perfeito para saciar curiosidades…

Olha o mar defronte a varanda de seu quarto, a vila ainda em silencio, os ciprestes balançam ao vento marinho, o cheiro penetrante entra em suas narinas. Lá adiante Alonso, o jardineiro, cuida das rosas. Estão tão lindas, que mesmo ao longe seu coração se enternece. O mar lembra, apenas lembra o da sua infância. Tudo muito distante, agora que a idade se aninhou em seu intimo, não sente saudades, talvez uma leve melancolia, sem dor ou sentimento de perda. Ali em Benalmadena longe de seu palácio nos Emirados árabes, agora que seu príncipe é só lembrança, esta agradecida por tudo que a vida lhe reservou.
Relembra com amor Maria Adelaide, a mulher que mudou sua vida, seu destino, que a levou a rodopiar nos salões da Maison de Luc Cristensen em vestidos de sonho. Viu-se novamente dançando no palácio imperial nos braços de Aziz. Sentiu a inveja de algumas mulheres vendo-a linda ao lado do amado. Fluida deslizava pelo salão. Fora tudo repentino, de S Paulo á Paris. Dos desfiles ao casamento real, do qual só tem lembranças felizes e três filhos maravilhosos. Netos estudando em Londres. Filhas e netas usando roupas da mesma grife que desfilara. Ela em sua vila lembra vagamente da praia distante, o mar verde -azul, os coqueiros e a dor que sentira ao deixar a segurança do amor de Aurélio. Respira lentamente, fecha os olhos e viaja definitivamente ao lado de Azis que estende sorridente a mão para ela.
.

About Yaradir Sarmento

Yaradir de Albuquerque Sarmento é sócia efetiva da AAL, ocupa a cadeira 14 desde 2015 publicou o primeiro livro em 2013: versos sem reverso - editor Benedito Ramos Amorim, no ano seguinte publicou outro livro de poemas: Maquinações Poéticas com o mesmo editor e logo em seguida o romance: Sonho de Uma Noite na Índia lançado sob a edição de Benedito Ramos Amorim no ano 2016. O nascimento de vênus livro de poemas publicado em 2019 - editora CBA. em 2021- editora Viva - Um Jeito Feminino de Ser Crônicas e Contas. 2021 - editora Viva - Camaleoa - Romance 2023- editora Viva - Poemas Esquecidos - aguardando lançado. Pintora autodidata fez duas exposições no MISA - 2014 e 2019. uma exposição coletiva no parque shopping. Sua pintura é espontânea, tem traços de impressionismo, no entanto as cores são sua paixão e desafio, flores e mulheres místicas são seu tema favorito. Quer através da pintura resgatar o divino no feminino, a deusa geratrix que impulsiona a humanidade para a procura do bem e o belo, tanto externamente na natureza que nos cerca quanto interna na força do espírito que constrói e eleva o homem aos páramos dos deuses.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *