O PREGADOR
   24 de julho de 2023   │     2:40  │  0

(…) eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser…
Já viram Deus as minhas sensações…

PESSOA, Fernando. Passos da cruz (XIII)

O PREGADOR MEDITAVA EM FLAGELANTE AGONIA. Um estresse tal o açoitava que tinha o corpo alagado por um suor farto e grudento. Um suor convertido em um sangue pastoso que lhe escorria das faces, dos olhos, do nariz, das orelhas e da caixa dos peitos.
Estava refugiado em um sítio retraído e sossegado. Pode-se dizer que se tratava de um jardim assentado ao pé de um monte erguido na vizinhança da beirada da escarpa oriental de um vale sedento. Desde lá podia ver o desenho descorado da cidade, além do barranco que declinava no outro lado da grota,


Deambulava, sozinho, entre oliveiras ancestrais. Embora o sossego fosse fraturado pelos ressonos roucos e sibilantes de onze peregrinos de peles amorenadas. Todos ou quase todos tinham barbas profusas e as palmas das mãos calejadas. De há muito que vinham teimosamente a encalçar as pegadas apressadas do pregador, numa romaria fadigosa por estradas poeirentas que percorriam planos, montes e baixios. De tão extenuados teriam adormecido onde quer que se encostassem ou arriassem seus corpos exauridos.
Pudesse o pegador escapar da angústia que o pressentimento da morte lhe injetava, bem que o faria. Mas não valeria a pena abortar aquela missão que ele próprio abraçou, ciente e consciente dos riscos que correria. Tanto mais àquela altura, quando faltava muito pouco para que estivesse consumada. Lenda ou não, uma tarefa concebida, tramada e imposta por uma trinca de seres etéreos, ele mesmo um dos pares. O que o fazia cúmplice no planejamento e na montagem daquela empreita que somente a ele, dentre os três, sobrou carregar nas costas.
Não que os outros dois estivessem a fugir dos fardos das responsabilidades por suas escolhas. Se os três na essência se compunham numa singularidade plural, não havia como não serem único nos seus desígnios e nas suas decisões. Apesar de não ter existido, até hoje, quem desvendasse o enigma daquela identidade compósita. Já desde aquele tempo, portanto, que só restaria acreditar ou não. E não cabia sentido que logo o pregador não reconhecesse o quebra-cabeça da sua própria substância.
Somavam-se nele, por assim dizer, os papéis de mandante e executor. Quando não, teria ao menos assentido. E ninguém duvida de que aquele que consente é tão comprometido quanto aquele que premedita, planeja e ordena ou executa. Não tinha, portanto, do quê reclamar. Era suportar com resignação ou fazer pouco de si mesmo, dos parceiros na misteriosa personalidade trinitária e dos pressentimentos de há muito delatados pelos mais renomados adivinhos.

Não era ele, enquanto instrumento das premonições de tão provectos videntes, mais ou menos humano do que ninguém. Estava, como qualquer outro, embutido em um invólucro de músculos alinhavados com nervos, artérias e veias, sustentados por uma armação de ossos articulados e cerzidos com cordéis fibrosos e complacentes. Embora seus seguidores mais crédulos dessem fé de que ele tinha herdado genes de alguma divindade. E ele não os desmentia. Estava seguro da sensação de já ter ao menos contemplado, frente a frente, a face do sempiterno.
Poder-se-ia dizer que cometera certas imprudências. Mas ele mesmo não as reconhecia. Talvez porque autoindulgente como outro qualquer ser humano; talvez porque sempre agira de caso pensado, com intento pontual e não sem antes medir as consequências. Em todos os casos fizera o que era necessário, de modo a encaminhar o cumprimento da sua missão.
Ainda menino, numa audiência pública, desafiou a sabedoria que os notáveis do conselho de ministros do templo festejavam neles mesmos, embora não passasse de fantasia impressa por obra e graça de fingimentos e vaidades. Confiavam que a ciência lhes era transmitida pelas túnicas solenes que vestiam e pelos títulos que se concediam. No que eram estimulados pelos subservientes que os cercavam.
Já crescido, fizera constar vinho em jarras onde se estocava água de beber, fartara de pão e peixe os bornais de uma exorbitância de famintos, arrancara palavras de mudos e causara serem ouvidos vários surdos de nascença. Também se espalhava que acordara defuntos, no que (ao lhes (re)despertar as esperanças) lhes restaurara o gosto de viver.
Não se arrependia de nada disso. E nem era preciso dizer que faria tudo outra vez.
Os tagarelas se conflitavam. De um lado, aqueles que, ao propalarem relatos de tais proezas, somente queriam gabá-lo como homem de luzes provadas, esclarecido, letrado, reto e generoso. Na outra banda estavam os mais eufóricos, a darem por certo que tinha aptidões sobrenaturais. Atributos que o qualificavam para dar fim à detestada opressão com que o povo estava a ser esmagado e se tornar o monarca daquele reino então destroçado, antes que, de uma vez por todas, fosse apagado do mapa.
Havia também aqueles que, não menos exaltados, viam em tais narrativas não mais do que lorotas, histórias para boi dormir. E a estes se somavam outros tantos que alimentavam a suspeita de que era o caso de encantamentos e bruxarias. Mas não se deve esquecer os supersticiosos, tão enfáticos a invocarem a hipótese de que o maligno estava por trás daqueles exercícios de ilusionismo. Pelo que o pregador não passava de um embaixador da corte do inferno e, portanto, um falso profeta.
Enfim, uma daquelas escaramuças entre os que só veem o que querem ver e os que não enxergam por não quererem enxergar.
Não se advertiam de que aos poderosos somente interessa um povo inculto e desiludido. Sem ânimo para refletir, a turba se conforta com a mínima névoa de duvidosa liberdade consentida, com as miragens rascunhadas com promessas oportunistas e com o engodo das esmolas esporádicas. A eloquência dos discursos muitas vezes dissimula os intentos e mascara os atos.
Já não fosse o bastante, contava-se que o pregador teria espancado os mercadores e cambistas que (com a conivência manhosa dos clérigos) empestavam o templo. O que a dizer que franqueados e permissores ali se plantavam, todos na cata de fortuna à custa das dádivas piedosas guardadas na casa de orações e do suor dos crentes. E foi assim que o pregador lhes desmontou o pretexto para, em nome de aclamados ideais virtuosos, explorarem a boa-fé dos incautos e lhes usurparem os sustentos. Fez ainda pior: teve a audácia de se arvorar em mensageiro eleito pelo criador, que o teria predestinado a se afirmar como reformador e em seu nome refundar o mundo.
Quanto aos aduladores, não se deram conta de que se vivia num mundo em que somente os poderosos têm imunidade para pensar e dizer. Fora da bolha em que aninhados aqueles semideuses autocanonizados, refletir era petulância e era sacrilégio soletrar sílabas ausentes do catecismo que sacralizavam. O que, por sinal, ainda não caiu em desuso nem dá sinais de que algum dia haverá de cair, ainda que a longo prazo.
Já para os opoentes, as preleções do pregador somente poderiam ser atribuídas a delírios de um alucinado. Quem era ele para desafiar os ministros do templo? Em quem se confiava para afrontar o sistema encastelado no comando do império? Até que ponto ia seu desatino para prometer uma nova engrenagem de poder, liberta da opressão, do embuste, da hipocrisia e da cupidez?
Não foi sem toda razão do mundo, portanto, que os ministros do templo e os anciãos do povo o elegeram como inimigo público número um dos guardadores dos pilares da fé e da harmonia no concerto do povo. O mais perigoso dentre todos os que, ainda vivos ou já defuntos, contestavam a onisciência e a onipotência de que se ufanavam. A fé (fincavam pé) não aturava que seus ministros mais erguidos tivessem as suas autoridades desacreditadas por qualquer um, fosse ele quem fosse. Nem a venerável ciência dos patriarcas.

Corria a notícia de que o pregador, falando para as multidões, bradara que vinha encabeçar uma reforma na leitura dos comandos alinhados no livro matriz de que os enfatuados sacerdotes se davam por guardadores. E foi isso o que mais enfuriou os inefáveis ministros do templo. O poder é viciante: ninguém a ele renuncia sem estrebucho e ranger de dentes. Cuidando-se do exercício do mando é sempre improtelável calar, encarcerar e preferivelmente matar os antônimos e até os sinônimos que possam, mais cedo ou mais tarde, representar ameaça ao poder do déspota. Não se domesticam escorpiões; mais cedo ou mais tarde a natureza lhes cobra o instinto e até picarão os seus semelhantes.
Mas era temerário fazer do pregador um mártir. Nada como o martírio, lecionava o sacerdote máximo, para fecundar as sementes espalhadas pelo supliciado. Se era imperioso silenciar o pregador para sempre, melhor convencer o governante leigo a castigá-lo. Os clérigos teriam a vingança sem terem de lambuzar as mãos com o sangue do desafeto. Precisavam, portanto, criar e divulgar uma narrativa que desenhasse no pregador um perfil de inimigo declarado do estado. O que era favorecido por um momento em que se anunciava iminente sublevação. O fingimento é a tábua de salvação dos hipócritas.

Teria o pregador dito à multidão, sem pedir que se guardasse segredo, que se deveria dar a cada um o que é seu: à fé o que fosse dela; ao trono o que fosse dele. Era mais do que palpável, pois, que instigava o povo à desobediência civil. Astucioso, portanto, o pretenso lastro puramente religioso das suas mensagens. Este existia, sim. Mas não passava de artimanha para encobrir uma anunciação manifestamente política. Agredia-se diretamente o conselho de ministros do templo, para dissimular uma afronta ao poder dominante.
Para que maior testemunho de uma insurreição de estimulação política? Quem, a não ser o senhor das armas e do cetro, poderia dizer o que lhe era ou não devido? Quem mais poderia competir com ele? Já estaria o pregador a insanamente se dar como monarca? A intenção do pregador, aos olhos dos ministros do templo, era, sem dúvida, aliciar as massas e, uma vez a tendo sublevada, demolir a ordem vigente e, afinal, usurpar o poder.
Não somente era, portanto, um contestador dos guardiães dos postulados da fé; era, mais do que isso, um insolente rebelde contra a autoridade da vontade estatal. Um discurso que daria, aos sacerdotes e aos anciãos do povo, o lume que poderia atear o ódio nos reais donos do poder. Somar-se-iam, assim, os rancores do templo e do trono. E o clero, como recomendava o estandarte do politicamente correto, não comprometeria a fachada com que simulava honra, retidão e amor à justiça. Fosse sempre reta, a justiça dos homens não careceria escorar-se no mito da infalibilidade.
Tanto eles quanto outros cúmplices não se amofinavam com o risco de que lhes poderia ser colada a pecha de detratores da crença e inimigos do povo. Muito menos de servis defendentes dos próprios privilégios. Embora estivessem convencidos de que seria estúpido permitir que periclitasse o poder que tinham arrecadado. Seriam reconduzidos à invisibilidade dos comuns.
Seria de fato artificiosa aquela retórica aparentemente religiosa do pregador? Existia, por trás dela, um tempero político que não podia ser desleixado? A política não se harmoniza com certos rubores e pudores. O que a alimenta é a sede de poder e nada mais. Mesmo quando se arrima em protestos eloquentes de compromisso com a liberdade e com a justiça social.
Os sacerdotes não tinham culpa do pregador ter ignorado as fronteiras impostas pelo bom senso à gente do povo. Ainda mais quando, não saciado com as investidas contra o clero, ainda tivera a insolência de desafiar as insígnias ostentadas pelos punhos de ferro do governo. Era mais do que um blasfemo; era o líder de um motim. Mais ameaçador, até mesmo, do que os revoltosos que empunhavam ostensivamente as suas adagas e vinham a ser infalivelmente esmagados. Aquela aliança com o trono era o que de melhor podiam dispor os sacerdotes e anciãos do povo. Somente ela poderia assegurar que o pregador seria ao mesmo tempo anatematizado pelo clero e seus cúmplices e pisoteado pela intolerância dos que governavam sob a suposta proteção de deuses que eles mesmos criavam.
Seria castigado, como merecia, pelas blasfêmias contra os escribas e pelos ultrajes aos cesaristas. Serviria de exemplo para todos os incautos que ao menos cogitassem um levante contra o templo e contra o trono.

Faltava urdir um plano. E nunca foi nem jamais será difícil, para quem tem as rédeas do poder nas mãos, reescrever a verdade, construir relatos convenientes, arregimentar testemunhas manobráveis e comprar sequazes. E foi isso o que aconteceu. Não demorou para que a emboscada estivesse engenhada. As testemunhas logo estavam arroladas e instruídas. Somente faltava aliciar algum correligionário dentre os mais íntimos do pregador. Também não seria coisa do outro mundo. Tanto mais no universo da política, sempre há os que negociam a lealdade e precificam a honra. E nada mais seria socorrido pela presunção da verdade absoluta que a delação de um parceiro do pregador.
Não tiveram trabalho. Logo surgiu quem se oferecesse para entregar o pregador. E era um delator sob medida. Tratava-se de um homem de meia altura, idade indecisa, olhar fuzilante, gestos abruptos, barba negra, vasta e descuidada. Desde que se alistara entre os seguidores do pregador havia sido um tanto ou quanto arredio, reticente e às vezes ríspido com os companheiros. No trato com o líder, contudo, jamais se desfazia de uma amabilidade efusiva e de mesuras afetadas. Ninguém, de sã consciência, poderia suspeitar de que tão exaltada veneração, algum dia, pudesse transmudar-se em hostilidade. Mas foi o que aconteceu: o discípulo vendeu o pregador a preço de banana.
Nada de novo. Os inimigos não traem pois que não há como se esperar deles fidelidade; traem os amigos, eis que não há como crer que venham a se desfazer da lealdade.

Não foram somente duas ou três vezes que o pregador foi ao lugar em que dormiam seus fatigados e adormecidos companheiros, no frustrado intento de encontrar um único ouvido que o escutasse, uma boca, apenas, que lhe dissesse uma única palavra. Era o jeito percorrer solitário a mansidão reflexiva daquelas horas vestidas pelas trevas da noite.
Já antes estivera solitário num semelhante insulamento. E, naquela vez, a vagar no vazio de uma vastidão desértica, em que no chão abrasado repousavam calhaus e rochas que eram como que homens empedrados pela insensibilidade. E ainda teve de suportar doutrinações de um exímio mentiroso, rematado fingidor e satânico manipulador. Conseguira sair ileso.
A isolação, naquela noite, era diferente. O sono pesado daqueles homens que ali rouquejavam não vinha de consciências adormecidas porque indiferentes a uma pusilanimidade que os corroesse. Vinha mesmo das andanças exaustivas pelas estradas da vida afora, animados pela esperança de que algum dia a verdade prevaleceria e os embustes seriam expostos e desmascarados.
Tal desterro escolhido, porém, não iria muito adiante. Viu, de uma hora para a outra, que uma luz amarelada e trêmula vinha a se achegar. Aproximava-se escoltada por vozes à primeira vista intencionalmente abafadas. Ainda assim, não eram de um todo engolidas pelo silêncio esponjoso que imperava na madrugada nascente.
Não careceu de esperar muito para ter certeza de que uma centúria de caminhantes seguia no rastro da luz bruxuleante de uns tantos archotes. E foi chegando a passos lentos, até que, sem mais tardança, ele estava sitiado. Eram soldados do templo: uma daquelas milícias a serviço da intolerância e da repressão, sempre arrimada em proclamados ideais edificantes. Continuaria a reincidir, séculos mais tarde, com os esbirros que eram chamados familiares do Santo Ofício e a polícia política dos jacobinos. Para não falar em exemplos mais recentes.
Ele estava prostrado, a fronte e os joelhos repousados no chão. Orava. Foi somente quando a turba já o encurralava e a ponta de uma espada lhe arranhou a nuca que lentamente se ergueu. Com a manga da veste enxugou o suor sanguinolento que lhe ensopava o rosto. Em seguida olhou, com olhar terno, nos olhos incendiados do seguidor que sumira ao fim da ceia. Foi quando o dito cujo se aproximou, com as mãos trêmulas colheu-lhe a cabeça e lhe beijou uma das faces. Estava consumada a entrega.
Os milicianos mais do que ligeiro se precipitaram sobre o pregador, agora tido como sacrílego desafeto da corte do templo e sedicioso inimigo dos senhores do poder, uns e outros escorados na hostilidade das armas. Ataram-lhe os punhos com o extremo de uma corda e pelo outra extremidade o arrastaram, com a perversidade dos infectados pelo ranço do ódio que diziam repudiar e pela ruindade dos truculentos. Apuram-se nos servis as rixas, as intolerâncias e a crueldade dos seus senhores. Para se fazerem inimigos de fogo a sangue de quem quer que seja, não carecem de mais do que saber que alguém é desafeto dos seus donos. Basta o doutor dar a ordem que eu garanto o serviço, é como ainda hoje pensam e agem os capangas dos caudilhos.
Levaram-no, aos safanões e sarcasmos, à presença do mais graúdo dos ministros do templo. Estava ele em conselho com outros clérigos assinalados e com os anciãos do povo. Ouvidas as versões dos sacerdotes pelas vozes das testemunhas amestradas, o pregador não ergueu a cabeça nem as contraditou. Sabia muito bem que há mentiras tão consistentes com o que se quer que seja verdade que até a verdade tem vergonha de tentar contrariá-las.
Para que se não pense que se está a sugerir que em nenhum momento pronunciou uma só palavra, que se vá logo dizendo que o pregador foi lacônico, mas em certo instante assentiu sem de fato fazê-lo: Vós o dizeis. No que pretendeu deixar claro que não era ele quem estava a dizê-lo; o inquiridor o dissera. Mas foi o bastante. De indiciado já passou a ser réu confesso.
Melhor tivesse permanecido calado. Era sem dúvida que o que dissesse pesaria contra ele. O julgador já tinha a sentença esboçada, antes mesmo de ouvi-lo. Alinhavar defesa seria desperdiçar argumentos. Como o foi.
Afinal de contas, prejulgar não é simplesmente construir convencimento antecipado; é absolver ou condenar de antemão. Onde quer que a tirania se instale, elegem-se os definidores da verdade e são amaldiçoados, perseguidos e esmagados quantos lhes questionem os comandos. E ele sabia que já estava desde antes condenado. Somente faltava a proclamação da sentença.

A noite pareceu interminável. Levado a uma enxovia, de logo o amarraram e o vendaram. Passaram, então, a humilhá-lo com galhofas, bofetadas, escarros, açoites. Ele não se esperneava nem chorava nem esbravejava nem maldizia os seus algozes e muito menos praguejava. Cabeça reclinada, o queixo a roçar-lhe a base do pescoço, apenas gemia, de vez em quando, um gemido bravamente resignado. Outras vezes, a custo erguia a cabeça, estirava a vista para o alto e balbuciava frases quase inaudíveis que sugeriam jaculatórias.
Quando veio a manhã o rosto estava em ruínas: uma larga e vasta fenda sangrava de um lado ao outro da testa; os olhos estufados mal deixavam surpreender estreitas frestas entre as pálpebras inchadas; o nariz estava afundado, os lábios intumescidos, os dentes destroçados. Ademais, lanhos rasgados pelo vigor das chibatadas lhe riscavam as costas, o tronco, as coxas; lascas de ossos fraturados apontavam no braço direito; costelas fragmentadas viraram lanças que lhe varavam o tronco de dentro para fora. Os pés descalços estavam enfiados numa poça de sangue talhado.
Visto assim demolido, ninguém reconheceria aquele homem robusto, espigado, de tez curtida pelo rigor do sol que incendeia o deserto, feições afetuosamente austeras, olhar inquisitivo, rosto quadrado, nariz ostensivo, cabelo e barba de um negro sossegado e brilhante, voz empostada, musical e soberana.

Era ainda bem cedo quando foi levado à presença do governante e julgador assentado num trono adornado com um dossel carmesim. De começo, após extrair duas ou três breves frases ambíguas do pregador, o magistrado não estava convencido da culpa do prisioneiro. Pregar que os cânones da fé não se confundem com os preceitos das leis dos homens e muito menos revela insurreição contra o diadema que decora a fronte do empoderado.
Como já é sabido, contudo, não era assim que entendiam os ministros do templo e os compenetrados anciãos. Era preciso assanhar a multidão. Ordenaram a uma malta de prosélitos que se misturassem com o povo e o instigasse com palavras de ordem. Assim foi feito.
Sendo época das festas, era de costume ser indultado um prisioneiro escolhido pelo provo. Mandou-se então trazer um conhecido amotinador e assassino que há muito tempo estava acorrentado na masmorra da prefeitura. Perguntado qual dos dois a turba preferia ver indultado, os agentes do templo bradaram que fosse libertado o sedicioso e condenado o pregador. E a manada, como sempre indisposta com o esforço de pensar, acompanhou os aboios dos agitadores.
O governante e magistrado ficou acuado. Contrariar a vontade do povo era estimular a desobediência, fazer periclitar o seu poder e na certa atravancar o seu futuro político. Não seria fácil prosseguir, caso perseguido pela hostilidade do clero e sem a ilusão da massa. Não tinha outro caminho, a não ser curvar-se ao clero e agradar o povo. Ordenou que o bandido fosse libertado e condenou o pregador.
Novamente na masmorra, a soldadesca continuou a torturá-lo. Mais uma vez desnudaram-no, jogaram um manto vermelho sobre os seus ombros, puseram na sua mão um anedótico arremedo de cetro e lhe ornaram a cabeça com um risível diadema arranjado com galhos espinhentos. Sem que houvesse rei morto estava posto um escarnecido e caricato rei vivo.

Conta-se, mas nunca ninguém provou: que o delator se arrependeu, devolveu o dinheiro que lhe comprou a consciência e se deu fim com as próprias mãos; que o governador e magistrado logo seria esquecido pelos cronistas, nada mais restando que duvidosas notícias do como se deu o seu declínio político; o sanguinário libertado sumiu sem deixar rastro; os ministros do templo e os anciãos do povo dissolveram-se na corrente do tempo e na trama da história.
Quanto ao pregador, escreveu-se mais tarde que morreu sem ter morrido. É até compreensível que se veja nisso um mito. Mas a fé não se sujeita às algemas razão; é no sentimento que ela se esteia.
Uma coisa, porém, é certa: a sua memória nunca foi apagada. E desde aqueles dias, pelo mundo afora, tem sido amado, traído e odiado como se permanecesse a pregar a sua mensagem. Talvez por isso tanto se tenha matado e morrido em seu nome. Que o digam (para não ir mais longe) os cátaros sitiados em Bézièrs pelo exército do rei da França, insuflado pelos porta-vozes do papa. Estejam aqueles mártires onde estiverem. Se é que estão.

Alcântara (Lisboa) julho de 2023

Obter o Outlook para Android

About Carlos Mero

CARLOS MÉRO nasceu em Penedo (1949). Membro da Academia Alagoana de Letras, do IHGAL e da Confraria Queirosiana (PORT.). Já integrou o Comité Scientifique da Revue REFLEXOS - Université Toulouse Jean Jaurès – FR.). Principais publicações: O Beco das Sete Facadas e outras estórias alucinadas (Contos). São Paulo: Marco Zero. 2005 - A lua de fel do casal Valhamor (Conto). Revue L’Ordinaire Latino-Americain, nº 212/2010, Université de Toulouse II – Le Mirail. - O amargo regresso da desesperança. Revue Caravelle nº 96/2011 - Université de Toulouse II – Le Mirail - Travessias (Contos - coautora: Cristina Duarte-Simões). Maceió: Viva. 2013 - Graciliano Ramos: Um monde de peines. (Depoimento). Lille (Fr): The BookEdition. 2015 - A deserção de Maíra (Novela), in Inventando Maíra S. Paulo: Scortecci. 2016 - O chocalho da cascavel (Contos). S. Paulo: Scortecci. 2016 - Um gosto de mulher (Poesia). S. Paulo: Scortecci. 2018 (2ª edição) - Dias assombrados em Roma (Memórias). S. Paulo: Scortecci. 2ª ed. 2020 - Contos covidianos. S. Paulo: Scortecci. 1ª e 2ª eds. 2021); Os dois melros (Conto). Rev. de Portugal nº 18/2021; Eça de Queirós e Graciliano Ramos: Diálogo criativo (Palestra: Vila Nova de Gaia - 15.03.2022). Rev. de Portugal nº 19/2022.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *