NORDESTE – CULTURA, CRENÇA, FÉ E FANATISMO
   28 de julho de 2023   │     4:10  │  1

Desse Brasil inteiro o Nordeste parece ser um mundo a parte, separado do restante do Brasil por uma cultura ancestral e intimista que só esse povo tão amiudado por outros Brasis mais ricos sabe guardar na memoria. Costumo dizer que o nordestino tem uma intimidade maior que os demais, com os Santos da religião católica. Crentes fervorosos que são, trazem uma fé exagerada, tratando seus compromissos com seus padroeiros com a mais pura fidelidade. Por nada descumprem as promessas de subir ladeiras e penhas de chão, pedras ou escadarias para cumprir tais votos pelas graças recebidas.

Mas, muitas vezes seus ícones devocionais são tratados como conterrâneos ou mesmo vizinhos parede de meia. Minha mãe fez promessa com Nossa Senhora do Bom Parto que se tornou madrinha de meu irmão, logo, pela lógica passa a ser comadre da santa. Minha avó Dona Maria Ramos de Oliveira costumava reclamar com a maior naturalidade de Senhora Santana, mãe de Maria Santíssima, porque o mês de julho chovia demais. Com isso ela expressava: – ô mulher imunda essa Senhora Santana o mês dela chove demais, é muita lama e sujeira. Os presentes dados em promessa aos santos eram, às vezes inacreditável. As imagens ganhavam brincos, pulseiras, anéis, coroas e até animais. Conta-se que um matuto foi levar uma cabra a São Benedito e entrou com animal na igreja entregando o voto amarrando o animal na mão do santo e foi para a porta da igreja soltar os foguetes prometidos. No primeiro estrondo a cabrita se assustou e correu porta fora da igreja arrastando São Benedito. O Matuto aperreou-se e gritou para o santo: – Segura a cabra bicho frouxo. Muito pior, eu creio, são as anedotas criadas em torno do próprio Jesus Cristo. O mais interessante é que, muitas delas iniciam da seguinte forma: “Quando Jesus andou no mundo…” Meu pai costumava relatar que quando Jesus andava pelo mundo encontrou um ferreiro que se gabava de sua fama, a ponto de ter na entrada de sua casa um aviso de sua habilidade denominando-se de Mestre dos mestres. Jesus ouviu suas façanhas e pediu licença para praticar um certo conhecimento que tinha no oficio. Então perguntou a uma mulher muito idosa que pedia esmolas. – Minha velhinha o que a Senhora mais deseja na vida? – Ser jovem outra vez. Respondeu. Então Jesus pegou aquela criatura pequenina de pele enrugada nos braços e a colocou na fornalha. Ao olhar dos que ali estavam pegou dos instrumentos do ferreiro e em seguida bateu aquela bola de fogo na bigorna e depois jogou o material fumegante no tanque de água ali existente. E logo emergiu uma jovem muito linda. Fazendo essa demonstração Jesus se retirou. Imediatamente, diante dos que assistiam a cena, profundamente irritado o ferreiro gritou por sua mãe que ao adentrar na oficina, este a agarrou e jogou na fornalha abafando seus gritos com o movimento das ferramentas. Em seguida tomou o material incandescente e jogou no tanque e nada aconteceu. Apavorado ordenou a um empregado que fosse buscar aque homem. Ali chegando e vendo o que havia acontecido assistiu ao apelo do ferreiro para trazer sua mãe de volta. Então Jesus respondeu: -Refazer o que está feito pode não chegar ao mesmo resultado. Desesperado o ferreiro pediu que mesmo assim tentasse. Jesus refez o trabalho finalizando jogando a mesma bola de fogo na bigorna e em seguida no tanque. Alguns segundos e pulou da água uma macaca. Era assim, em meio ao riso da plateia que o poder de Jesus Cristo era enaltecido.

 

A peregrinação de São Pedro e São Paulo na divulgação do evangelho no testemunho da Bíblia Sagrada, naquela época menos difundida na população se tornava mais fluente nos relatos sobre Pedro e Paulo os dois personagens dos mais importantes no ouvir das pessoas mais simples e sem letras, com uma só pessoa: Pedropaulo. Era esse nome presente nas orações das rezadeiras, figuras essenciais no cotidiano nordestino. E era no abrir das rezas onde aparecia assiduamente as frases que outorgava a autoridade das rezas: Quando Jesus Cristo andou no mundo encontrou Pedropaulo, pra onde vais Pedropaulo? Vou curar fulano de tal de espinhela caída, quebrante, erisipela, mal de monte e assim seguia com o rol de moléstias. A crença nas rezas, meizinhas e garrafadas só perde para as curas de cobra. Já se desconfiava quando descia da marinete (onibus) um desconhecido com uma mala. Era a mala das cobras. Sua proposta era rezar naquela gente crédula de mordida de cobra. Eu mesmo recebi a reza, feita no rastro, minha mãe não teve coragem de arriscar o meu polegar. Mesmo assim, não faltou freguês e que eu me lembre, ninguem morreu, apesar das mordidas. O. Certo é que teor da oração havia sempre a aprovação de Jesus. Essa mesma passagem se dava através da Virgem Maria. A devoção a mãe de Jesus reverenciada, principalmente como Virgem da Conceição estava fincada nas sagradas palavras do Ofício de Nossa Senhora, onde a casa inteira reunia a família e vizinhos para, no dia de sábado ser cantado o sagrado ofício cujo estribilho dizia: Ouvi labios meus/Minha oração /Toquem em vosso peito/Os clamores meus. Sem esquecer que a própria Virgem Maria se ajoelhava no início da oração até o final. Razão pela qual era um pecado grave interromper a reza. Da mesma forma, era considerada a parte mais forte do ofício o “Deus vos salve relogio” cujos versos dizem: Deus vos salve, relógio/Que andando atrasado/Serviu do sinal/Ao Verbo Encarnado. A devoção a Maria sempre foi tão grande que acreditava-se que o compromisso diário de rezar “O Sonho de Nossa Senhora” a própria Virgem da Conceição viria avisar o dia da morte. Existem diversas versões eis uma delas:

Fui ao Monte das Oliveiras
Onde Jesus suspirou
Tão grande gemido deu
Que acordou São Gabriel
Acordei anjo bendito
Venha ver a Virgem Maria
Se ela dorme ou vigia
Eu nem durmo nem vigio
Que essa noite tive um sonho
Que mais ninguém vai sonhar
Vi a lua gemer e vi o sol suspirar
E açoites ouvi soar
Quem ouvir não aprender
Quem souber não ensinar
Dia de Juizo sua alma perderá.

E esse tão lembrado “dia de juizo” ou o dia do Juízo Final, onde, segundo o livro do Apocalipse Deus julgará seu povo, mesmo na singeleza do povo nordestino é um dia para nunca esquecer. Eu tinha uns 12 anos quando minha família mudou de Penedo para Maceió. Lembro, vivamente quando minha mãe, sempre com seus vaticínios e cismas, despediu-se das vizinhas, amigas de décadas, dizendo-lhes: – Adeus! Até o dia de juizo. Posteriormente, na minha mania de esclarecer as coisas, perguntei sobre sua despedida tão lacônica de suas amigas. Ela me respondeu já marejando os olhos: – Porque eu sei que não as verei mais. E por que o dia de juizo? É isso que a palavra adeus significa. Até Deus. Até o encontro com Deus. Diferente do que difunde a Igreja Católica como: “Eu te recomendo a Deus”. Dona Zélia, minha mãe, ainda complementou com os versos da incelença: “ Sua incelença vai entrar no paraiso/Adeus, irmão adeus até o dia de juizo. Dai por diante ela Entrou na gaiatice cantando outras loas inventadas por ela: “Quando o morto fica com a bexiga cheia, sem poder mijar. Repete: sem poder mijar. Então passou a contar do costume de lavar o morto. E lembrou que quando menina, na Pindoba Grande, ela em pleno velório denunciou que o milho da pamonha e da cangica foram ralados na mesma gamela que lavaram a defunta. A neta da velha foi dizer a dona Maria Ramos e minha avó só asseverou: – Vocês são umas imundas. Ela disse porque viu.

Mas, a religiosidade do povo nordestino ainda beira a obstinação. São inúmeros exemplos de ontem e hoje que dão conta do alto grau de fé desse povo. Ainda lembro abismado com os rigores da Semana Santa. A partir da procissão do Domingo de Ramos com as imagens da igreja cobertas de púrpura e as de casa tambem, numa tradição que remonta ao seculo XVII com a intenção de que, durante a Semana Santa as pessoas nao se distraiam na igreja olhando para as imagens. Nunca soube e tampouco alguém discutiu o assunto comigo. Um tema ainda mais interessante, esempre foi o exagero de preceitos em relação à e devocional do mesmo periodo, que se transformava e ainda se transforma numa especie de “Festa de Babete”. A comilanca iniciava na quarta-feira (maior) ninguém comia carne até sábado de Aleluia. O sujeito estrebuchava, enjoado do peixe, do Bredo, do arroz e feijão de coco, da manissoba e do pirão escaldado e só podia desenfastiar com peixe frito. Nem o camarão, caranguejo ou siri, faziam parte do cardapio. Apesar do padre referir-se mais ao jejum e ao peixe como uma forma de penitência em casa se tornava uma festa. A Sexta-feira da Paixão não era um dia comum. Nenhuma mãe podia repreender seus filhos com castigo. Em compensação o filho era obrigado a ajoelhar-se diante da mãe e pedir perdão por todas as raivas que lhe fez durante o ano. Outro costume quase sagrado era visitar o padrinho. Levava-se um presente e o padrinho quase sempre, retribuía Com alguns trocados.
Os ritos da Semana Santa eram seguidos a risco. As crianças até eram dispensadas da Via Sacra, se na sexta-feira não havia missa, a do sábado de Aleluia era interminável. Tudo porque durante a missa o padre tinha que achar a Aleluia que era uma mancha de sangue, perdida entre alguma página do volumoso Missal. Levava horas até que o silêncio fosse quebrado pelo cântico das mulheres e o cheiro do incenso e a fumaça do turibulo. Uma outra crença Incomparável acontecia no sábado de aleluia, findo a manhã da matança de Judas que envolviam jovens e crianças da comunidade. Mais tarde estavam assistindo uma missa toda em latim sobre o cheiro do incenso e o encantamento do ostensorio circulando entre a fumaça do incenso e o arquejar das notas do Tanto Ergo. Findo os ritos da missa “após o sacerdote encontrar a Aleluia a rapaziada já esperava na porta da igreja, pronta para o Micareme que terminava quase ao raiar do sol do domingo de Páscoa.

About Benedito Ramos Amorim

Pesquisador, Crítico de Arte e Coordenador de Ação Cultural e Social da Associação Comercial de Maceió, tem livros publicados a partir de 1974: Mona Lisa Um Autorretrato de Leonardo da Vinci - Pesquisa, em 1979 Lamento Derradeiro que recebeu o Prêmio Moinho Nordeste da Academia Alagoana de Letras – Contos, 2003 A Construção do Palácio do Comercio – Pesquisa, Edufal, 2005, Um Amor Além do Tempo – Romance, HD Livros, 2006, Doce de Mamão Macho – Novela, Editora Catavento. Articulista em diversos jornais da capital alagoana desde 1976, no extinto Jornal de Alagoas desde 1976, a partir de 2002 no O Jornal e Jornal Gazeta de Alagoas. Prêmio Graciliano Ramos da Academia Alagoana de Letras com o romance inédito Pensamentos Mágicos em 2006, ano em que assumiu a cadeira número 9 da Academia Alagoana de Letras. Editor por 5 anos do jornal O Palácio publicado pela Coordenadoria de Ação Cultural e Social da Associação Comercial de Maceió. 2019 Prêmio Editora Gracialiano Ramos com edição dos livros, Nadi e 2ª Edição do livro Doce de Mamão Macho.

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