NORDESTE – A FÉ E A HERESIA.
   23 de agosto de 2023   │     3:29  │  1

Tenho uma lembrança, da minha primeira infância, de ver o Sr. (Seu) Canhoba, porteiro da Fábrica Marituba, onde eu morava, exibir um chifre de boi, cortado ao meio, fechado com uma tampa, do mesmo material e quando abria, havia uma brasa acesa onde acendia o seu pagoga (cigarro de palha), fedorento. Nunca mais vi coisa igual.

Às vezes até pedia para ele abrir e me mostrar aquela maravilha. Parecia Mágica! Nunca podia imaginar, e ainda me pergunto hoje, como uma brasa podia continuar viva dentro de um recipiente fechado. E hoje aos 70 anos, mesmo sem ter dúvida desse episódio, não posso ter o testemunho de ninguém, haja vista quantas vezes perguntei  e sem ter confirmação da existência de tal relíquia.  Foi quando lembrei de Carlos Mero, penedense apaixonado pela região, pesquisador por herança paterna, um erudito de coração aberto para a cidade sanfranciscana de Penedo.  Porém, ele também não lembrava. E, sequer ouvira menção alguma, no uso desse objeto. A essa altura, já havia feito inúmeras consultas ao Google sem uma resposta plausível. Então lembrei de mencionar a palavra “Isqueiro de chifre” e apareceu um vídeo do YouTube com um artefato de chifre com a mesma descrição. Então o reconheci. O formato era idêntico. A princípio, vi que o tal objeto era conhecido no Sul do Brasil com o nome de “Avio”. Encorajado por este primeiro achado busquei novamente no Google a palavra AVIO e então encontrei o mesmo objeto com o nome de “Binga”. Estava explicado porque minha mãe usava a expressão: “Toca fogo no Binga”. Então observei que o meu olhar de criança havia me enganado, apenas em uma coisa: a brasa não ficava acesa dentro do chifre, o seu interior servia para fazer o fogo e permanecer com ele aceso para acender o pagoga de seu Canhoba ou mesmo uma fogueira e até o fogão de lenha, em casa. A pequena chama era produzida pelo atrito de duas pedras e uns molambos esfiapados. Era assim que o fogo chegava até o binga. Para minha mãe, aquela expressão, bem podia dizer: “ – Vamos acender o fogo para preparar o jantar”. E, “tocar fogo no binga” indicando uma certa pressa ao cair da noite, desvencilhando-se da conversa com as vizinhas para ir cuidar do jantar do marido e dos filhos.


É desta riqueza cultural que nós, nordestino, nunca nos demos conta de quão abrangente é a disposição geográfica das raízes da língua portuguesa, falada no Brasil, negligenciando a etimologia de expressões que chegaram ao nosso cotidiano, algumas, até envergonhando nosso discurso verbal. E um exemplo disso é a expressão: “Deixar na mão”. Sem rubor algum o termo é usado do púlpito a tribuna, por gente comum ou por autoridades sem que ninguém se atenha a sua essência que se compõe de uma de queixa à recusa de concluir o coito, restando ao parceiro a masturbação. A língua coloquial, sobretudo, no Nordeste não exclui palavras como “enfezado” – que significa está cheio de fezes, entupido mesmo com uma brutal constipação intestinal. Por isso é que o mamão tem o apelido de “passa a raiva”, o que justifica o sujeito estar enfezado. Outra maravilha é a palavra “esculhambado”, que banalizou, a ponto de hoje também ser comum ver a palavra na imprensa nacional com o sentido de desarrumado. Estes são só alguns exemplos de como a língua portuguesa é formada.

A Satanização e vilanização do cachorro.
Começamos por afirmar que em 1789, Portugal, lugar de origem de nosso idioma, a palavra “cão” designava o animal doméstico, assim como parte das carabinas e peças da arquitetura. Enquanto a palavra cachorro designava o filhote do cão. Até 1900 em dicionário da língua portuguesa, publicado no Brasil, a palavra “cão” designava apenas o animal doméstico, semelhantemente ao dicionário de 1789 editado em Portugal. Porém não conhecemos registro algum sobre a satanização do animal, seja na Idade Média ou na Idade Moderna que compreende todo o período desde a queda de Constantinopla – 1453 até 1789 com a Revolução Francesa que marcou o início da Idade Contemporânea. Vale uma ressalva em relação aos lobos selvagens e lenda do lobisomem. Nada, absolutamente, nada que faça comparação ao diabo.

 

Possível origem do termo “Cão do Inferno”.
Dante Alighieri foi, possivelmente, quem divulgou em seu livro: A Divina Comédia o ser mitológico que viria ser popularizado na figura do Cão doméstico denominado Cérbero pela mitologia grega. Eis o texto:
Canto VI
Cérbero – Círculo da gula (3) – Espírito de Ciacco
Quando acordei já estava no terceiro círculo, cercado de mais tormentos e mais atormentados que surgiam de todos os lados. Uma chuva, gélida, eterna, com neve e granizo, caía sobre a lama podre que as almas encharcavam. Cérbero, fera cruel e perversa, latia com suas três goelas para as almas submersas na lama. Ele tem uma barba negra e seis olhos vermelhos, ventre largo e garras aguçadas com as quais rasga os pecadores e os tortura. Elas berravam como cães e se contorciam na lama, tentando em vão se proteger das chicotadas da chuva dura.
Quando Cérbero nos viu, abriu suas três bocas e exibiu suas presas, rangendo e estremecendo diante de nós. Meu mestre, cauteloso, encheu suas mãos de terra e atirou nas goelas do cão danado. O monstro, guloso, não hesitou em engolir a terra, se emperrou com ela e ficou em silêncio, como um cão faminto que se ocupa com o seu osso.
É possível, que a semelhança do “monstro do poço” com um cão (cachorro) doméstico deve ter se tornado muito forte a ponto do animal ser comparado a um demônio, mais ainda, fazendo com que sua figura se tornasse uma espécie de ícone do mal. Sendo que a própria palavra (cachorro) veio a se tornar ofensiva.

Entrementes, esta fala preambular, embora pareça fugir do tema principal, serve para elucidar esse panorama das fronteiras entre as crenças, a fé e a cultura, especialmente a nordestina.
Sempre foi nítida e intencional o propósito da gente do meu tempo de agradar a Deus e não desagradar ao diabo. Este último era chamado de “cão do inferno” ou, simplesmente “cão”. E, havia um preceito de não falar seu nome em vão, semelhantemente, ao primeiro mandamento da Lei mosaica. No entanto, isso nunca foi levado a sério, o tema parece ter sido banalizado a partir do Segundo Livro de Leitura de Felisberto de Carvalho, editado por Paulo de Azevedo & Cia, Rio de Janeiro em 1934, era a 90ª edição, com um prefácio de Niterói, 1891 (citar pesquisador) a partir da leitura 17, página 86 com o título de A embriaguez O texto é aberto com um desenho muito interessante mostrando um jovem conversando com o diabo. Mais abaixo vem a leitura:

 

O moral da estória
“Conta uma lenda árabe que o demônio apareceu um dia a um moço e lhe disse:
-Tu vais morrer, entretanto, posso prolongar a tua existência, só porem com uma das três condições: – Mata teu pai e esbordoa a tua irmã, ou entrega-te ao vício da embriaguez.
– Como! Matar meu pai? Isso não farei nunca! Seria preciso desconhecer o quanto lhe devo.
– Então espanca tua irmã.
– Ela! Ela que me ama de todo coração, que é para mim tão carinhosa e a quem estimo mais a própria vida! Não! Não o farei também!
– Logo: Morres ou faze-te bêbado. O moço empalideceu e hesitou. Morrer, pensava ele, quando apenas começo a viver… Pois bem, disse ele ao demônio, deixa-me viver e eu me entregarei ao vício da embriagues!
Assim fez o pobre moço: mas estando embriagado deu pancadas em sua irmã e matou o seu pai.”
Tudo indica, que o fundamento dessa narrativa árabe, que servia para alertar aos jovens para o vício da embriaguez, não foi tão evidenciada na lembrança de seu público leitor quanto a presença do diabo no livro de leitura. Uma geração inteira não lembrava tão facilmente do texto como do “cão do segundo livro”. A expressão passou a designar toda criança desobediente, buliçosa e malcriada. Era comum ouvir dizer: – Isso é o cão do segundo livro. Eu mesmo, algumas vezes, fui o cão do segundo livro, sem sequer indagar quem era ele.

Cruz Cão.
Talvez, por esta razão, era tão comum dizer ao fim de uma brincadeira a seguinte pantomima: – Cruz cão, chaveiro do cão, tome sua chave que eu não quero mais não. Quem me pegar é um filho do cão. Assim, dizer que “está de cruz cão” era estar fora da brincadeira.

Jogo Infantil – Brincar de Fita
Brincar de fita era um jogo extremamente inocente, porém dividido em dois lados: o bem e o mal. Qualquer um dos lados podia sair vencedor.
Primeiro, eram sorteados os dois anjos: o anjo bom e o anjo mau. Segundo, as demais crianças seriam as fitas e cada uma escolhia sua cor. Era muito importante que cada um tivesse inteligência para escolher uma cor difícil de ser lembrada, sobretudo, pelo anjo mau.
O início do jogo se dava com a presença de um dos anjos chegando até as crianças (fitas) isso se daria no sorteio. Junto com as crianças estava um protetor que atendia ao anjo.
O anjo bom: – Anjo mau passou por aqui?
O Protetor responde: passou.
Anjo bom:- O que disse de mim?
Protetor: – Que não gosta de cruz.
Anjo bom: Cruz pra ele, tem fita?
Protetor: – Tem, que cor?
O anjo bom podia acertar ou não. Ainda passava pelas dicas que eram dadas, na base do tá quente ou frio. Caso acertasse levava a fita para o céu.
O mesmo esquete repetia-se com o anjo mal, perguntando o que o anjo bom disse dele. A resposta é “uma cruz” então o anjo mau respondia: – Cruz pra ele, tem fita? E assim repetia-se. Caso acertasse o a cor da fita, o anjo mal levava a criança para o inferno. E assim continuava até que todas as fitas eram levadas.
A brincadeira de Fitas, mesmo no seu sentido lúdico de um jogo infantil, possui um simbolismo profundo da luta do bem contra o mal, presentes em outros jogos do folclore nacional. As fitas, representam as almas destinadas ao céu ou ao inferno, dependendo da facilidade com que escolhia a cor de sua fita ou facilitava ser encontrada. Algo parecido com a obediência e a desobediência ou o pecad, nem sempre esse antagonismo se revelava vivo o tempo todo. Na visão do povo de meu tempo, o temor a Deus parece ter tido sempre a mesma proporção do temor ao diabo. O primeiro porque iria julgar e punir e o segundo porque iria enganar.

Estória Popular
Conta-se que um homem viajava e no seu caminho encontra uma capelinha em ruínas, dedicada a certo santo, que por questão de ordem pessoal, prefiro não mencionar. A pequena erma estava muito deteriorada, janelas e portas quebradas e a coberta quase desmoronando. Daí, interrompeu a viagem e foi em busca de pedreiros e material para consertar a igrejinha. Quando a obra já estava bem adiantada, ele observou que havia um nicho no fundo da igreja, do lado de fora, com uma pequena estátua meio esquisita. Não procurou sequer saber de quem era, chamou o pedreiro e o remunerou a mais para que refizesse a cantaria do nicho, limpasse a peça e aplicasse uma nova pintura.
Terminando o serviço, com a capelinha novamente de pé e segura, pagou o serviço, se despediu dos trabalhadores e continuou a viagem. Mais adiante foi tomado de assalto por um bando de ladrões. Vendo-se sozinho para lutar gritou pelo santo que havia restaurado a igreja. E nada aconteceu até que já estando com uma espada apertando seu pescoço, apareceu um cavaleiro muito bem trajado com um longo manto de ceda preto reluzente com uma espada na mão. E, bastou a sua presença para afugentar a todos.
Admirado, o viajante agradeceu e perguntou o seu nome. O sujeito olhou para ele e respondeu: – Lembra-se da igreja que você cuidou, mandou concertar as paredes, as portas, as janelas e o forro, depois mandou pintar? Lembra? – Já sei. Disse o viajante. Você é San… – Não, não, não, respondeu o cavaleiro. E, acrescentou: – lembra daquele nicho do fundo da igreja? Aquela figura que achou esquisita e colocou no mesmo lugar? Era eu.
Qual ensinamento nos dá essa estória? Às vezes, para viver é necessário se dar bem com Deus e com o diabo. Que não parece muito distante do que nos diz Maquiavel: “Caso não possa vencer o inimigo, una-se a ele”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

About Benedito Ramos Amorim

Pesquisador, Crítico de Arte e Coordenador de Ação Cultural e Social da Associação Comercial de Maceió, tem livros publicados a partir de 1974: Mona Lisa Um Autorretrato de Leonardo da Vinci - Pesquisa, em 1979 Lamento Derradeiro que recebeu o Prêmio Moinho Nordeste da Academia Alagoana de Letras – Contos, 2003 A Construção do Palácio do Comercio – Pesquisa, Edufal, 2005, Um Amor Além do Tempo – Romance, HD Livros, 2006, Doce de Mamão Macho – Novela, Editora Catavento. Articulista em diversos jornais da capital alagoana desde 1976, no extinto Jornal de Alagoas desde 1976, a partir de 2002 no O Jornal e Jornal Gazeta de Alagoas. Prêmio Graciliano Ramos da Academia Alagoana de Letras com o romance inédito Pensamentos Mágicos em 2006, ano em que assumiu a cadeira número 9 da Academia Alagoana de Letras. Editor por 5 anos do jornal O Palácio publicado pela Coordenadoria de Ação Cultural e Social da Associação Comercial de Maceió. 2019 Prêmio Editora Gracialiano Ramos com edição dos livros, Nadi e 2ª Edição do livro Doce de Mamão Macho.

COMENTÁRIOS
1

A área de comentários visa promover um debate sobre o assunto tratado na matéria. Comentários com tons ofensivos, preconceituosos e que que firam a ética e a moral não serão liberados.

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião do blogueiro.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *