O tiro saiu pela culatra
   21 de agosto de 2023   │     3:22  │  0

Lá pras bandas de Pindoba, conheci uma viúva, dona de uma carvoaria. Atendia a freguesia com certa presteza. Como era muito dentuça, os seus dentes alvos, sempre à mostra, estavam permanentemente contrastando com o pó preto que a envolvia. Criou a filha, Maria Rosa, como princesa, longe do carvão. Dizia sempre: “E isso é vida! Sempre suja, sempre suja!”. Quando a menina ficou mocinha, a sua preocupação era casá-la com alguém de melhores condições. Não queria que a filha tivesse o mesmo destino que o seu.


Um dia, aquela menina serelepe desde nascença se enrabichou pelo filho do seu Malaquias, dono de uma mercearia que de tudo vendia: prego, querosene, ralador de coco, alguidar, sabonete, pirulitos em forma de bonecos ou de bichos, pião, arroz, feijão, farinha, fumo de corda, rapadura, açúcar, manteiga, agulha, linha, caderno, lápis, pente… Enfim, um sortimento que o fazia ser considerado um homem rico, pelos moradores daquele lugar. Zé Bento, filho do comerciante, era o rapaz mais cobiçado da região, embora de estudo nada quisesse saber e do trabalho corresse às léguas. Só levantava para almoçar; passava a tarde na paquera com a Rosinha, e à noite, ficava na praça, jogando gamão com os mais velhos.
Certo dia, a mãe de Maria Rosa, que não desconfiava de nada daquele namorico, teve uma vertigem e foi acudida por uma freguesa que a levou para casa, numa tonteira de dar gosto. Ao chegar, muito fraca e amparada por aquela mulher, deparou com a filha no seu quarto, com os bicos dos peitos intumescidos, aparentes através de uma camiseta de malha, em consequência dos beijos lambidos que Zé Bento lhe arrochava na nuca. E a mãe, ao ver a cena, desmaiou de mentira. Quando voltou a si, teatralmente, diga-se de passagem, parecia agulha enganchada na vitrola, pois repetia sem parar: “Sem-vergonha! Ai, se seu pai fosse vivo!”. Transtornada, e sempre na encenação, correu à mercearia e fez um escândalo danado. Toda a cidade tomou conhecimento do fato. E, como brincadeira de telefone sem fio, as mais variadas versões foram surgindo, numa riqueza de detalhes de escandalizar qualquer um. A maledicência tomou conta daquele lugar.
O casamento aconteceu. A mãe morreu feliz, de um ataque fulminante, poucos dias após a cerimônia. Partiu acreditando que tinha feito o melhor para a sua Rosinha. Porém, os cochichos e dedos apontados martirizavam a moça. E a nora do seu Malaquias, envergonhada com a toda a boataria que se espalhou pelos quatro cantos da cidade, foi entristecendo e definhando. Vivia a vagar pelos cantos da sua nova casa. O jovem Zé Bento nunca levantou um dedo para defender a sua honra e, com pouco tempo, já tinha outras mulheres. Aquilo lhe pesava muito. Até que um dia não mais levantou da cama, e nem sequer tomava banho. Morreu com o corpo encolhido e a alma enegrecida pela vergonha daquilo que não fez.

Eliana Cavalcanti
Em março de 2020

 

About Eliana Cavalcanti

Nasceu em Maceió/Alagoas e aos dois anos de idade passou a morar em Olinda-Pernambuco. Aos oito anos iniciou seus estudos de balé em Recife, aos quinze anos passou a ensinar balé na sua escola. Atuou como primeira bailarina do Grupo de Ballet do Recife. Em 1973, casou-se e passou a residir em Maceió, onde fundou o Ballet Eliana Cavalcanti e, em 1981, o Ballet Íris de Alagoas (1981-2002). Bailarina, coreógrafa e mestra com 57 anos dedicados ao ensino do balé, Eliana também é escritora e Mestra em Literatura pela Universidade Federal de Alagoas (2009) e sócia efetiva da Academia Alagoana de Letras, desde 2012. É autora de três livros e organizou um outro. Tem diversos contos, crônicas e artigos publicados em jornais, revistas literárias e sete antologias. Dentre seus prêmios e distinções, destacam-se: Medalha Jorge de Lima ( Governo de Alagoas/ 1995), Prêmio Concorrência FIAT/1990 com o espetáculo “Certas Emoções”; 2º lugar em coreografia (Bento Gonçalves - RS-1995); diploma de Benemérita das Artes (SECULTE /2001); Comenda Mário Guimarães (Câmara dos Vereadores /2002), Diploma de Construtores da Dança em Pernambuco (Conselho Brasileiro de Dança /2004); Membro da Ordem do Mérito dos Palmares, no grau de Oficial (Governo de Alagoas/2008), Comenda Senador Arnon de Mello (Instituto Arnon de Mello/ 2008); Comenda Nise da Silveira (Governo de Alagoas/2013); Prêmio “Mulheres que escrevem” ( SECULTE/ 2023).

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