BONECA DE PANO
   20 de agosto de 2023   │     3:55  │  6

OCerca de seis anos após chegar ao Brasil, passei por uma tragédia capilar, que me fez ser confundida com uma boneca de pano. Vou revelar todos os pormenores dessa aventura, mas, antes, eu preciso voltar no tempo, para explicar certos aspectos imprescindíveis na elaboração de toda a narrativa. Eis aqui a história!

Ao lado do meu quarto, existe uma salinha agradável onde assistimos televisão em família. Junto do sofá, há uma prateleira repleta de retratos antigos e atuais. Num deles, eu devo ter em torno de oito anos. Vestindo um saiote de tule, posiciono meus braços erguidos, de forma arredondada, acima da cabeça. Esticando uma das pernas, encosto o chão de leve com a ponta do meu pé direito. Eu estava prestes a subir no palco, para interpretar o papel de uma bailarina de caixa musical. Era durante uma apresentação natalina da minha escola de dança.

Para a ocasião, minha mãe me havia levado até o salão de beleza. Sendo muito miúda, a cabeleireira precisou botar várias listas telefônicas na cadeira para me erguer até debaixo do secador, um enorme capacete que tostava a ponta das orelhas. Saí de lá com o cabelo totalmente anelado. Eu abominava aquele tipo de penteado antiquado que me era imposto. Por mais que eu fosse pequena, eu percebia o quanto ele não combinava com minhas feições pueris. Eu aparentava ter uma avolumada peruca de mulher adulta cobrindo-me o crânio infantil.

Desde o início da sua segunda gestação, mamãe pressentiu que eu nasceria mulher. Grande admiradora da atriz mirim Shirley Temple, ela almejava ganhar uma filha parecida com a estrela gorducha que ostentava cachos encaracolados de poodle em todos os seus filmes. Em vez disso, contrariei todas as expectativas da minha digna genitora: além de haver nascido raquítica, sempre tive o cabelo extremamente fino e reto.

Nunca peguei piolhos como a maioria das crianças, pois acredito que as lêndeas não conseguiam agarrar-se aos meus fios, de tão lisos que eram. Não havia tiara, fivela, grampo ou presilha que me ficassem presos nas mechas lambidas. Sempre deslizavam fios abaixo, até caírem no chão.

Para tentar corrigir a triste genética da filha, minha mãe me submetia a uma tortura da qual eu não podia escapar: desde meus três anos, fui obrigada a cachear as madeixas com a ajuda de rolos aplicados sobre os cabelos molhados. Depois de secos e artificialmente ondulados, mamãe os fixava com borrifadas de laquê.

O ritual se repetia todas as vezes em que devíamos comparecer a alguma comemoração em família, como casamento ou batizado. Com o tempo, o suplício tornou-se semanal, pois mamãe queria que eu chegasse à missa dominical com o cabelo frisado de querubim. Se hoje existe um tipo de bobes confortáveis, fabricados em silicone e fixados por meio de um fecho de contato, do tipo macho-fêmea, na época os rolos possuíam uma armação metálica. Para prendê-los, era preciso usar agulhas pontiagudas de plástico que espetavam a cabeça.

Para ter a certeza de que eu ia ficar totalmente cacheada no dia seguinte, os bobes eram colocados na véspera de cada evento. Forçada a me deitar na cama com eles, eu demorava muito para encontrar o sono, pois não havia posição que me aliviasse o sufoco. Eu podia me estirar de costas, de bruços ou de lado, a agonia era sempre a mesma, já que, além de cobrir o crânio inteiro, eu tinha rolos presos tanto na testa como nas têmporas. Todo esse sofrimento durou até eu completar nove anos. Cessou completamente devido a um acidente que ocasionou sérias feridas no meu couro cabeludo.

Devia ser em torno das onze da manhã. Eu já tinha tomado banho e usava minhas roupas domingueiras. Íamos sair por volta do meio-dia, pois éramos esperados num almoço na casa de uma tia. Só faltava mamãe se aprontar. Impaciente com sua demora, desci até o jardim para brincar um pouco no velho baloiço erguido na parte de trás da casa. Com o propósito de garantir que minhas melenas fossem bastante ondeadas, eu tinha os bobes ainda presos na cabeça, uma vez que eles eram retirados nos últimos minutos, logo antes de deixar a casa.

Sempre fui uma menina intrépida, com comportamento atrevido de pivete, pois arrumava confusões na rua a toda hora. Eu era uma típica “Maria-Rapaz”, alcunha das meninas que apresentam características e comportamentos considerados tradicionalmente masculinos. Aos sete anos, eu já havia fraturado o braço em duas ocasiões e tinha uma grande cicatriz na testa, fruto de uma queda numa escadaria. Como eu me arrebentava com certa frequência, minha mãe morria de vergonha ao levar meus casacos e agasalhos ensanguentados na lavanderia. Pareciam as roupas de uma criança maltratada por pais abusivos.

Sentada na tábua de madeira, segurando as cordas laterais, eu dobrava e esticava as pernas repetidamente para dar força ao vaivém do balanço. Dessa forma, eu subia cada vez mais alto. Não satisfeita com o embalo arriscado do brinquedo, inventei de dar uma de “porquinho pendurado”. Essa posição consiste em jogar o tronco para trás e deixar a cabeça pendurada para baixo, que nem uma trapezista de circo. Acontece que as cordas estavam puídas por causa das chuvas. Elas se romperam, bem quando eu estava me elevando nas alturas. Violentamente arremessada, caí de cabeça sobre o solo forrado de cimento.

O choque foi tão brutal que nem consegui sentir dor. Completamente aturdida, permaneci no chão um instante para me refazer do violento impacto. Foi então que notei algo úmido me descendo pela nuca. Apalpando a parte de trás do pescoço, senti um fluido pegajoso molhando-me a mão. Olhando minha palma, entrei em pânico, pois estava banhada de sangue!

O medo me fez recobrar os sentidos. Aos berros, levantei-me e subi correndo as escadas atrás de socorro. Apavorados, meus pais se deram conta da seriedade das feridas, mas não ousaram mexer nos meus cabelos. Sendo assim, fui prontamente levada até uma emergência hospitalar, onde dei entrada com os bobes ainda cravados na cabeça. Após observar atentamente o estrago, o médico de plantão percebeu que, ao bater na superfície dura, a estrutura de metal dos rolos havia rasgado meu couro cabeludo em vários lugares. O machucado era bastante feio.

Bem devagar, com a ajuda de uma tesoura pontuda, o plantonista seccionou a parte superior das madeixas enroladas, libertando dessa forma os bobes presos no meio delas. Após soltar os cabelos, eles foram cortados rente à superfície da pele para facilitar a tarefa da enfermeira, entretida em desinfetar as lesões. Onde não houve ferimentos, os fios foram poupados. Dessa maneira, fiquei com algumas mechas penduradas enquanto outras partes do crânio ficaram totalmente desbastadas.

Desolada, minha mãe me viu transformada em múmia, uma vez que, após ser suturada, saí do hospital com a cabeça toda enfaixada. Recordo ter ficado radiante com as bandagens cobrindo-me o cocuruto e parte das bochechas. Fascinada pela personagem principal do seriado O Homem Invisível (1933), que passava reprisado na TV, fiquei satisfeita por ter-me transformado numa cópia-mirim desse herói tão singular!

Algum tempo depois, com os pontos já retirados, precisei nivelar os cabelos, pois estavam de todos os tamanhos. A profissional do salão optou por uma poda radical do tipo “Joãozinho”, o que me agradou sobremaneira, já que sempre desejei ser o segundo filho da família. Explico-me: assim que nasci, meu pai não quis admirar-me no berçário. Machista e misógino ao extremo, ele ansiava ganhar outro garoto e não aceitava muito bem a chegada de uma herdeira com cútis de pêssego. Eu soube da cisma paterna desde muito cedo, pois mamãe não me poupou de tão lastimável recordação. Vez ou outra, a sentença emergia:

— Você era tão linda, mas ele não quis olhá-la!

Admirando-me ao espelho da cabeleireira, atinei que eu parecia um menino trajando um vestido florido. Para combinar com o novo corte, passei a vestir calças compridas e shortinhos nos dias mais quentes. Em algumas fotografias, tiradas na praia, eu tenho dez anos e não uso a parte de cima do biquíni. Vestindo um simples calção de banho, eu aparento ser o mano mais novo do meu próprio irmão.

A partir da traumática experiência dos bobes, nunca mais aceitei que minha mãe me tocasse a cabeça. Avessa a qualquer tratamento capilar, passei a ostentar somente penteados curtíssimos. Através deles, eu experimentava a inebriante liberdade dos rapazes, pois eu podia lavar o crânio diariamente e não era preciso um secador para enxugar-me os cabelos reduzidos.

Desabrochei mulher na adolescência. Nessa fase, usei madeixas descendo nas costas, mas foi por pouco tempo. Logo após ganhar meu primeiro filho, aos dezessete anos, voltei a usar os fios repicados. Continuei assim, mesmo após o divórcio do primeiro marido. Eu estava determinada a seduzir com o que existia dentro da minha cabeça e não com o que tinha por cima dela. Na época em que conheci meu amado brasileiro, eu só frequentava barbeiros, uma vez que fugia dos salões de beleza como o diabo da cruz. Meu “look” era igualzinho àquele usado pela atriz Jean Seberg, no aclamado filme Acossado (1960), de Jean-Luc Godard.

Durante meu namoro com Antônio, deixei novamente a cabeleira crescer. Conservei esse penteado ao longo dos quase quatro anos seguintes, até o nascimento do meu terceiro filho. Portanto ao pisar no Brasil pela primeira vez, eu ostentava um corte chanel batendo nos ombros. Depois da minha chegada aos trópicos, fiquei atônita ao descobrir que meu cabelo escorrido era tido como “bom” no hemisfério sul, surpreendendo-me quando as pessoas me tocavam os fios e lhes elogiavam a maciez. Aquilo provocou uma grande revolução na minha autoestima, bastante abalada devido à insatisfação materna e à rejeição paterna.

Quando Lady Diana surgiu no cenário internacional, a maioria das mulheres copiou o corte e o tom aloirado da distinta aristocrata. Logo após o pomposo matrimônio da princesa de Gales, algumas amigas minhas aderiram à nova moda. Em pouco tempo, fiquei cercada por beldades de tez morena, loiras como escandinavas de nascença. Motivada pela revolução capilar das comadres, inventei de tornar-me igualmente agalegada. Todavia, sem a mínima vontade de ir ao cabeleireiro, decidi mudar a cor dos fios por conta própria…

Qualquer tipo de tintura requer cuidados específicos. Acontece que, como eu não frequentava os salões de beleza, eu não fazia ideia dos procedimentos empregados na hora de tingir os cabelos. Igualmente, desconhecia por completo que tipo de produto usar para adquirir luzes ou reflexos. Portanto de passagem por uma farmácia, arrisquei-me ao pegar um pacote de pó descolorante, daquele mesmo que minhas colegas passavam nos braços, na hora de clarear a penugem.

Chegando em casa, cuidei prontamente da transformação do meu visual. Após tomar banho, enrolei o corpo numa toalha felpuda. Plantada diante do espelho, abri o envelope contendo o pó mágico. Sem demora, misturei dentro de uma vasilha o produto com água oxigenada. Mexi bem até obter uma papinha azulada. Depois disso, com a ajuda de uma colher de sopa, apliquei grosseiramente o creme sobre a cabeça molhada. Meu método era bem tosco e rudimentar. Eu ia segurando alguns tufos densos, um por um, para lambuzá-los com a pasta espessa. Preservei certas melenas, na intenção de dar um efeito “mechas”. Portanto não pintei algumas partes do cabelo. Depois disso, deixei a mistura milagrosa agir durante trinta minutos.

Após meia hora de espera, chegou finalmente o momento de descobrir o resultado da minha invenção. Lavei a cabeça com água morna, passei condicionador, enxaguei e tirei o excesso de umidade com uma toalha branca. Levantando o rosto, mirei a imagem refletida no espelho. De súbito, fiquei preocupada: os fios embaraçados pareciam possuir estranhas tonalidades. Porém, tentei acalmar-me, pois lembrei que eu precisava secar os cabelos primeiro para ter uma noção exata da mudança de cor.

Munida do secador, joguei ar quente em todos os sentidos. À medida que o cabelo ia secando, constatei que eu possuía mechas nas cores amarelo-pinto, laranja-fluorescente e marrom-arruivado, minha cor natural! Até minha franja estava tricolor! Eu poderia ter apanhado a lista telefônica e ligado para marcar uma hora num dos salões do bairro. Na certa, uma colorista seria capaz de recuperar o estrago. Acontece que ia dar meio-dia em breve e eu devia estar no centro da cidade no mais tardar às 13h, pois necessitava retirar um dinheiro enviado pela minha mãe. Depois do banco, eu ainda teria de passar num lugar para efetuar um pagamento urgente. Tudo estava programado, não havia como desistir…

Após cuidar do lanche das crianças, e deixá-las sob os cuidados da empregada, fui para meu quarto me aprontar. Mexi nas minhas coisas atrás de qualquer acessório para cobrir a maldita coloração. Acontece que eu não possuía nem chapéu e nem lenços. Como não havia o que fazer, resolvi caprichar na produção para contrabalançar a feiura do cabelo.

Além de uma saia colorida, vesti uma blusa estampada com babados no decote. Pegando meu espelho de bolso, esmerei-me na maquiagem. Engrossei os cílios, passando várias camadas de rímel preto. A seguir, coloquei um batom vermelho nos lábios. Para terminar, espalhei um blush rosado sobre as bochechas. Após pingar três gotas de perfume nos punhos, peguei a bolsa e saí rumo ao centro da cidade.

Entrando no banco, vi que havia bastantes pessoas esperando ser atendidas. Logo, parei no final da fila que me parecera ser a mais curta. Bem na minha frente, havia uma mulher nova segurando a mão de uma garotinha. Apesar da lentidão do serviço, a criança permanecia bem-comportada ao lado da jovem senhora. Enquanto aguardávamos a fila avançar, a pequena virou-se para trás. Assim que me viu, ficou totalmente paralisada pela emoção!

Pasmada pela minha figura variegada, passou a observar-me intensamente. Apresentava um semblante de plena beatitude, lembrando uma pastorinha de santinhos de oração. Uma daquelas contemplativas, ajoelhadas diante de uma aparição de Nossa Senhora de Fátima. Como ela insistia em me fitar boquiaberta, fiz uma discreta careta e franzi as sobrancelhas, na esperança de fazê-la tirar os olhos da minha pessoa. Acontece que, atordoada pela sua incrível descoberta, a menina quis extravasar sua estupefação. Puxando a barra da saia da mãe, clamou em alto e bom tom:

— Mãinha, olhe a Emília!

Ouvindo a frase proferida pela garotinha, os demais clientes presentes olharam na minha direção. A maioria não teve como segurar uma gargalhada. Lá estava eu, com meu penteado tricolor, minha roupa espalhafatosa e minha maquiagem um tanto chamativa. Eu era uma Emília em carne e osso. Ela mesma! A famosa boneca de pano do Sítio do Pica-Pau Amarelo!

About Chantal Jeanne Lafaye Frazão

Nossa autora, Chantal Jeanne Lafaye Frazão, nasceu nos arredores de Paris, em pleno baby-boom do pós-guerra. Foi viver na capital quando tinha apenas 21 anos. Pouco depois de se mudar, a jovem cruzou o caminho de um brasileiro chamado Antônio. Assim que colocou os olhos nele, ela soube que o destino havia enfim chegado à sua porta! Em pouco tempo se apaixonaram, casaram-se e foram viver em Maceió, no ano de 1979. Chantal virou rapidamente uma alagoana, aprendeu a preparar uns quitutes nordestinos como carne de sol, feijão tropeiro ou cozido com pirão. Lançou o livro Memórias de Uma Franco-Alagoana em 2019 — obra que, nesse mesmo ano, recebeu o Prêmio Notáveis da Cultura Alagoana, na sua 16ª edição. Mais recentemente, no dia 27 de abril de 2023, Chantal entrou na ilustre Academia Alagoana de Letras, ocupando agora a cadeira 33, anteriormente ocupada pela escritora e poetisa Lyzette Lyra. Acompanhando o esposo alagoano nas suas viagens de negócios, Chantal aproveitou a vida e aprontou em NYC, Londres e outros lugares onde sua curiosidade a fez vivenciar inúmeras aventuras, que soube transfigurar em histórias, através das quais o narrador pega o leitor pela mão e o leva para passear em variegas perambulações pelo mundo afora...

COMENTÁRIOS
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  1. Ana Maria

    Parabéns, Chantal! Está crônica tem mesmo a sua pessoa: engraçada, elegante e meiga nas lembranças da infância. Sempre gosto do que vc escreve, pelo conteúdo e pela forma. Um abraço, querida!

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  2. Licia Gatto

    Texto com um humor inigualável!! Me vi olhando vc com o alerta da criança. Imaginei a figura na minha frente, colorida com cabelo tricolor.. não tem como não ri da cena hilaria. Parabéns.

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