CONFISSÕES DE UM RIO AGONIZANTE
   6 de setembro de 2023   │     4:39  │  0

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.

CAEIRO, Alberto (PESSOA, Fernando),
O guardador de Rebanhos, XXVIII

Um

SE O RIO QUE LAMBE A MINHA TERRA tivesse memória, não seria rio, seria gente. Teria veias e teria sangue a viajar por elas. Teria nervos que seriam cabos de transmissão de comandos e mensagens. Teria uma engrenagem de músculos e ossos conjuntados com cadarços fibrosos. Teria sonhos, pensamentos, vontades, dúvidas, certezas, alegrias e desalentos. Desconfiaria dos homens ou talvez até os temesse. E deles procuraria distância ou fugiria espavorido.
Mas disso tudo não tem nada. O rio que beija o meu chão não passa de um rio. E se há uma sua memória, ela está escrita nele mesmo: no espelho d’água, na calha, nas margens, nas ilhas e nas croas. Tal qual as falésias, que guardam as suas memórias no que foi esculpido pelos ímpetos das marés, encontrões do vento, vigor dos aguaceiros.
De algum modo parecido, hoje, com a memória de Tutancâmon. Ela não subsiste nele, eis que extinto há milênios. Está impressa, contudo, no seu túmulo: nos murais coloridos que vestem as paredes, na máscara mortuária, no sarcófago, no cálice de alabastro, nas bengalas, no trono, na carruagem de ouro… Enfim, no todo mundo de artefatos destinados à instalação e ao adornamento da sua morada na eternidade. Um tudo em que são lidas, até mesmo, as indiscrições que os escribas não ousaram delatar nos papiros.
A memória daquele rio está inscrita nas lágrimas derramadas pela Cachoeira de Paulo Afonso, nos depoimentos rupestres que perseveram nas escarpas do Cânion do Xingó, no testemunho das barrancas esculpidas nas suas beiras. Também gravada nos seus cochichos cúmplices com a ribanceira do Penedo do São Francisco, nas impassividades devotas da Pedra de São Pedro e do Morro do Aracaré… Sem falar nas vaidosas baronesas, com suas cabeleiras verdes, que ainda teimam em sulcar suas águas, ansiosas pelo instante em que o mar finalmente as possuirá.

Dois

Não era esse o juízo de Abel Cordeiro, pescador dos seus oitenta anos e lá vai fumaça, renomado por seus relatos de acontecidos façanhosos que vivera ou de que ouvira falar no seu mais de meio século de pescarias.
Chegara a quase morrer, uma certa feita, por ter sido enfeitiçado pela Mãe d’Água. Ela teria aparecido do nada, enquanto ele pescava.
Só a viu do umbigo pra cima, pois que era somente o que estava fora d´água. Tinha os olhos agateados e um nariz breve, arrebitado, dorso timidamente côncavo. Os lábios copiavam o desenho de um coração. Os cabelos negros, longos e lisos lhe emolduravam o rosto ovalado, escorregavam pelos ombros e iam agasalhar os dois seios miúdos e rijos que imitavam solenes cúpulas e profetizavam segredos e deleites.
Ela penteava os cabelos enquanto se admirava no espelho d’ água e entoava um cântico como quem declama um salmo de louvor ao sol que inaugura o amanhecer. A sua voz… a sua voz era uma voz angélica de quem é vocalista num coral sinfônico de serafins.
Tivesse ele se deixado embriagar por tamanho fascínio, tê-la-ia seguido rio adentro e ela riria enquanto ele se afogava. O que acontecera com tantos outros.
Ainda assim, porém, não era fácil renunciar a tão hipnótica promessa de culminância carnal. A lascívia embota a razão e encabresta a prudência, teria ele ruminado. Sozinho, naquela beira de rio, restou-lhe engalfinhar-se com o espectro da tentação. Com igual bravura à de Jacó, filho de Isaac e neto de Abraão, ao se bater com um personagem enigmático no vau do Jaboque.
Abel Carneiro não somente nocauteou a lasciva provocação como a afugentou. Resistira e somente por isso vencera.
A Mãe-d’água não escondeu o desaponto. A sua autoestima fora ultrajada. Franziu a testa, constringiu as sobrancelhas, retesou a mandíbula, rangeu os dentes, mergulhou e sumiu. Mas não sem antes lhe estirar um olhar lânguido, levar os dedos aos próprios lábios modelados em formas de tarte d’ amour e lhe arremessar, desde longe e com um sopro, um beijo figurado.

Três

Para Abel Cordeiro o rio tinha alma como se fosse gente. Dava conta de tudo que se passava à sua volta. Podia ser um tanto reservado e não conversar com qualquer um. Com ele, porém, dava confiança e proseava por horas a fio.
E o rio, naqueles diálogos mudos, confessava, sem pedir reservas, as suas alegrias e os seus desgostos. Reclamava das malvadezas que fizeram e ainda faziam com ele e maldizia a hora em que não engolira as primeiras caravelas que venceram a sua foz e o violaram à montante.
Elas haviam trazido os primeiros brancos presunçosos que depois trouxeram os outros tantos que o vinham matando aos poucos. E com eles costumes esquisitos, moléstias inéditas naquelas bandas, desafeição à terra, à gente, às águas, aos bichos.
Por tudo isso, Abel Cordeiro não carregava dúvida de que o rio tinha memória. E de que nunca esquecera das pirogas aprontadas com palhas de Periperi e atadas com timbó, que o desafiavam e lhe fendiam as correntes. Nem dos homens nus, corpos lisos, parrudos, pele tostada, olhos puxados, rostos, troncos e membros timbrados com vermelho, amarelo e negro, tirados do urucum, do jenipapo, das cinzas e do barro.
Eles remavam de pé nos regaços das canoas: em romarias rio acima, sem desleixarem a reverência enquanto domavam a obstinação tolerante das águas avexadas; em peregrinações rio abaixo, humildemente sentados no soalho da embarcação e rendidos à correnteza e aos rumos escolhidos por ela.
Iam sempre urgentes, mesmo quando não fossem para pelejas com outros homens nus de outras aldeias daquelas paragens. E quando iam tramavam apanhar os desafetos de surpresa e não preparados para o combate. Não fosse assim e já os encontrariam instigados por brados marciais, todos os bravos apetrechados com seus arcos, flechas, bordunas e zarabatanas.
Nem os de cá nem os de lá se arvoravam em senhores daquela estrada líquida a que chamavam Opará, o que quer dizer rio-mar. Nem das ribeiras que ele fecundava, nem da floresta que adiante verdejava o horizonte, nem do chão batido em que erguiam as suas malocas, dançavam as suas danças de roda e cantavam as suas canções num cantochão que respirava e exalava o cheiro da terra. Tampouco dos bichos que, ali e acolá, voavam ou marchavam ou rastejavam ou nadavam ou habitavam as entranhas da terra.
Aqueles homens, tal quais as mulheres, os curumins e as cunhatãs das aldeias, eram partes daquele universo de matas, arroios e lagoas, planaltos, planícies, vales e montanhas. Assim como as guelras o são dos camurins. Também do céu turvo dos dias molhados ou translúcidos e acalorados nas horas de ardente sol a pino. E ainda do silêncio das noites lutuosas, assustadas por assobios e gemidos enigmáticos ou daqueloutras enternecidas pela meiguice da lua e pelo esplendor das estrelas solitárias ou em rebanhos, a revelarem a face olímpica de Tupã.
Rio, matas e viventes, portanto, a se confundiam numa trindade que transpirava interação e harmonia.

Quatro

Pelo testemunho do velho Abel Cordeiro, o rio também não se tinha esquecido das caravelas intrometidas que o subiram desde onde ele se abraça com o mar. Nem dos lençóis brancos e enormes que elas traziam estendidos e sustentados por troncos robustos e empertigados, como se de prontidão para agredirem o firmamento.
Diga-se o mesmo do alvoroço dos brancos malcheirosos que vinham engradados em seus porões e alvoroçados no plano que se estende entre os púlpitos de proa e de popa, enfiados em invólucros estranhos e multicoloridos que lhes escondiam as nudezas. Nem das estranhas pelagens negras, castanhas, amarelas, afogueadas ou brancas que lhes disfarçavam os rostos.
Muito menos das hastes pontiagudas, de um brilho lunar, que lhes pendiam das cinturas e das bordunas que cuspiam fogo. E ainda da fala engrolada com que proseavam entre eles.
Seriam intrusos trazidos de mundos distantes, com as piores das intenções… de terras tão improváveis que nem os pajés tinham delas ouvido falar, nos seus diálogos místicos com seus conviventes vaporosos. Seriam, talvez, espíritos malfeitores em forma de gente. Logo se veria, todavia, que eram de carne e osso e arrogantes, inclementes e gananciosos. Mas também mortais, o que era um bom sinal.

Cinco

Mal desembarcaram e já foram a corromper o cenário que há milênios era desenhado e colorido pela natureza, a ofenderem o rio com despejos que corrompiam a castidade das suas águas, a terrorizarem mulheres, guerreiros, curumins e cunhatãs com seus modos rudes, suas ordens truculentas, suas ameaças incubadas e seus castigos incomplacentes. E ainda a demolirem árvores e a desperdiçarem os bichos que nadam nas asas do vento, fazem acrobacias debaixo d’água ou trocam segredos com os espíritos das matas.
Na vizinhança do rio plantaram aquele lenho, cruzado por um outro a meia altura. Mas nem a sombra, de tão magra, tinha serventia para a gente do lugar. Para os recém-chegados, contudo, davam ares de um testemunho de uma crença em divindades forasteiras e marco do domínio sobre a terra usurpada.
Os paridos e crescidos naquelas bandas tinham almas pulcras. Por mais que surpreendidas pela prepotência dos estrangeiros, não poderiam imaginar que, mais um pouco, seriam constrangidos a uma veneração fingida daqueles dois paus cruzados, os joelhos maltratados pelo tórrido chão de barro.
E serem obrigados a ouvir, sem o mais mindinho entendimento, uma fala indecifrável, demorada e enfadonha de um daqueles alienígenas. Um tipo sisudo, mais para velho do que para novo, com o teto da cabeça raspado e sempre a levar, pendurada no pescoço, uma réplica acanhada daqueles lenhos de leitura nebulosa
O corpo, nas horas de falação, estava enroupado, desde o pescoço até os pés, com uma veste mais colorida do que as plumagens dos papagaios falantes e das araras barulhentas. Uma veste salpicada, de cima a baixo, de contas miúdas e luzentes de um amarelo persistente e intenso.
Mais um tempo e outras e outras caravelas foram chegando e logo partiam com os porões atulhados de toras de ibirapitanga. E com cada uma que vinha chegavam forasteiros que não partiam com elas, arranchando-se com os outros que já lá estavam. Quando menos se esperou já eram tantos e tantas que até parecia serem eles os filhos daquelas terras.
Vieram, então, as malocas de estranhos feitios, onde os despojadores, alguns com mulher e filhos trazidos de fora ou já nascidos ali, albergavam as suas famílias e armazenavam as suas tralhas. O que dava lugar a que pelo menos se abrigassem do sereno, das chuvas e dos raios esbraseados pelo sol dos trópicos. E depois os cercados onde apresavam animais nunca dantes vistos por aquelas paragens… bichos gulosos e barulhentos que perambulavam sem relutância sobre as próprias imundícias.
Até o nome do rio ousadamente mudaram, fazendo pouco da língua, das crenças e dos costumes do lugar. Deixara de ser Opará, o rio-mar. Dali para frente, caso fosse gente de carne e osso, acudiria por Rio São Francisco. O que, para os nativos, não dizia coisa nenhuma. Mas o fato é que nem o próprio rio pareceu se amuar. Na certa porque, ao ser rio, nunca dera atenção ao nome de antes, como não daria ao de depois.
Abel Cordeiro estrebuchava: Asneira! É preciso ser muito idiota para acreditar que ele não tem ciência de nada. E ia adiante, com o peito cheio e o queixo empinado : Ele se lembra de tudo e de mais alguma coisa. Eu que o diga!

Seis

Mais um tempo e os da terra já não eram mais vistos na terra de que eram partes e que ela já tinha donos. E os donos se acreditavam senhores de tudo: do chão, das árvores, dos bichos e até do rio que por ser rio nunca se rebelou. E eis que aqueles homens nus só serviam para satisfazer as vontades daqueles intrusos branquicentos e prepotentes.
Acontece que se aqueles homens e mulheres e curumins e cunhatãs viviam nus era porque não conheciam a hipocrisia dos que se vestem porque réus das malícias que os envenenam. Nasceram livres como as águas que escorrem rio abaixo e como as aves que planam nas alturas e escolhem a gosto os galhos das árvores em que assentarão seus ninhos e nutrirão as suas frágeis ninhadas.
Até quando os filhos se convençam de que se têm asas também estão equipados para voar e partam para desfruir da liberdade com que a natureza os mimou. E lá vão eles a revoar nas alturas e, mais dia, menos dia, livremente fundar, nos galhos das árvores que elegerem, os ninhos em que chocarão os ovos que lhes afirmarão as descendências.

Sete

Pois era assim que os nativos se viam: livres de pé e mão. Inclusive das amarras dos preconceitos e dos entojos dos fingidos puritanos que estavam a chegar. Sabiam, muito bem, que as águas apresadas estão condenadas à estagnação. E é verdade que viver é antes de tudo ser livre. Que o diga o açum-preto: uma vez encarcerado, somente a cegueira lhe desamarra o canto. Aquela tal história, talvez, de que quando os olhos não veem coração não sente. Daí por que os celerados lhes furam os olhos, como pranteia a canção.
Como seria de se esperar, aqueles homens nus, altivos e puros de coração não se deixaram domar pela prepotência dos intrusos. E muitos foram por isso imolados. Outros, enquanto ainda puderam, embrenharam-se nas matas e sumiram. Mas nem com a fuga sobreviveram à ira insana dos bárbaros. Foram caçados e muitos apresados ou executados.
E dizer que eram selvagens aqueles filhos da virgem Pindorama! Logo eles que por milênios preservaram a natureza que os civilizados em poucas centúrias destroçariam.

Oito

Lá se foram os anos e depois os séculos. O rio que mima a minha terra, porque é rio e não gente, fez de conta que não viu que pouco a pouco as suas margens foram despojadas do manto verde que o amparava. Também não viu que ficaram riscadas por caminhos de pedra que deram fim às árvores, aos arbustos e às gramíneas. Afora enxotarem os bichos do mato, do ventre da terra, das águas e dos ares.
Mas não ficou nisso. As malocas, impregnadas do calor da terra, dos suspiros do vento e das pancadas de chuva nos invernos fingidos daqueles mundos, foram expulsas por abrigos desabituados aos mistérios dos trópicos e erguidos com tijolos, argamassa e telhas. A gente com quem o rio conviveu por milênios a fio já não estava lá. Havia sido afugentada ou assassinada pelas flâmulas aparatosas das cabeças coroadas e adornadas com pedantes desenhos vistosos, mancomunadas com os estandartes solenes dos tonsurados, ornados com cruzes e inscrições em latim que pregavam o amor, a misericórdia divina e o desapego aos bens e fortunas. Onde está o teu tesouro aí está o teu coração, ainda tinham o cinismo de proclamar.
Tupã havia sido expulso por um homem de feições desafeitas àquelas terras: um varão que passava o tempo todo pendurado em dois lenhos cruzados, a cabeça pendurada sobre o tronco, os braços escancarados, as mãos perfuradas por pregos impiedosos, os pés sobrepostos e varados por um cravo perverso, o corpo inteiro coberto de rastros de sangue. Levava no rosto o semblante abatido de quem tem a carne maltratada e o espírito devastado pela tortura, pela humilhação e pelo desengano.
Não bastasse, o céu perdeu o esplendor das noites enluaradas e as estrelas empalideceram. As suas resplandescências foram amortecidas por claridades vertidas por astros de mentira que enganavam a escuridão. E nos dias e noites de céu limpo ou nublado, assim também nas madrugadas cálidas ou invernosas, lá estão as desafiadoras torres das igrejas, a insolentemente ameaçarem agatanhar a copa celeste.

Nove

Até porque sempre teimou que o outrora Opará tinha sentimentos, vontades e memória, Abel Cordeiro, o octogenário pescador renomado pelos causos mirabolantes que contava, terminou inconformado com o torpor que algemava a dignidade do rio. Ele não aprendera, com aqueles homens nus que outrora como que o veneravam, a bravura com que enfrentavam a tirania, os dissabores e até a morte.
O que ainda faltava para que empinasse a espinha e tomasse uma atitude? Já tinham encurralado as suas águas lá para cima e ele a cada dia ficava mais exaurido. Até já havia quem adivinhasse que, mais cedo do que se pudesse antever, gente e bichos poderiam atravessá-lo a vau. E ele continuava com a mesma indolência.
Estava mais do que exposto que perdera o amor-próprio e que já não tinha ânimo para tomar qualquer atitude. Quanto mais ir em busca do brio que dele teria se desagarrado em alguma corredeira ou garganta por onde passara.
O primeiro e mais tímido ato de opressão é sempre sinal de uma tirania prenunciada. Quem não se rebela contra tal aceno, por subestimá-lo ou não conseguir ou não querer lê-lo, faz-se cúmplice do despotismo que vier a ser instalado e desde logo renuncia ao direito de contra ele resistir.
Bem que poderia se ter insurgido enquanto era tempo. Faltou-lhe vontade e fibra. Não viesse dizer que fora desastrosamente ingênuo, que jamais acreditou que aquilo pudesse vir a acontecer. Todos os sinais estavam lá: a truculência com que os espoliadores esmagavam qualquer alento de resistência dos nativos; a inumanidade com que castigavam os bravos que os confrontassem; a arrogância com que desdenhavam as crenças e o jeito próprio de ser e de viver dos natais; a prepotência com que pisoteavam a inocência dos curumins e das cunhatãs, injetando-lhes a doutrina do crucificado.
Já não havia jeito, convenceu-se desalentado o ancião. O rio não se insurgiria. Não se saberia dizer, quando afinal extinto e dele não restasse mais do que uma calha ressequida e craquelada, se o haviam assassinado ou fora ele mesmo que se dera fim.
Bastava ver as croas que se amiudavam, importunando as rotas das canoas, lanchas e balsas. Pelo visto, faltava muito pouco para que sumissem de vez as derradeiras curimatãs, pilombetas, tainhas, traíras, piranhas e caranguejos de água doce que, por tantas eras, tiveram morada em suas entranhas
Não tivesse sido tão acolhedor e imprevidente nos remotos tempos das caravelas, talvez não estivesse agonizante e até não tivesse, por sua omissão, sido cúmplice na destruição das matas e no banimento dos bichos da terra, das águas e dos ares. Na escravização e no martírio, enfim, daquele povo ingênuo que de verdade o amava e o protegia com desvelo de irmão de fé. Mesmo porque o tinham dentro de si, assim com o rio os tinha a lhe compor o todo.
Ou é um covarde ou um mentiroso, enfurecia-se Abel Carneiro.
Eu não era e não sou nem mais nem menos do que um rio, refutava o rio, numa daquelas sensuais bocas-da-noite. Daquelas em que a lua nascente apressa o passo, na esperança imprudente e lasciva de alcançar o sol poente, abraçá-lo, entregarem-se e afinal explodirem num orgasmo apocalíptico. A não ser na cabeça desse velho talvez simplório, talvez demente, poderia caber a ideia de que penso, sinto e tenho querer. Um delírio!
Era no mínimo insensato (troçava o rio) pretender que ele escrevesse manifestos, decretasse greves, liderasse comícios, manifestações e passeatas. E mesmo se pudesse e o fizesse, o que poderia esperar dos opressores e empavonados e tirânicos homens das caravelas? Eles o peariam, lhe sufocariam o juízo, lhe entupiriam a garganta, castrariam a vontade. E ainda se escudariam na intolerância disfarçada da fé que professavam e na divindade do mandato do monarca que lhes abençoava a soberba.
Nada melhor, portanto, não ter ele memória. Pelo menos aquela que instala e acalenta ou amargura os pensantes. Se tinha memória, era aquela que se grudava nele qual tatuagem, impressa em seu corpo extenuado, nas suas águas mirradas.
Sabia, sim, que estava às portas da morte. E, também, que nem haveria sentinela nem cortejo fúnebre em que conduzido ao cemitério. Nem teria tumba, muito menos monumental, onde lavrada uma derradeira frase que jamais pronunciara e encimada pelo entalhe de uma cruz romana ou de uma estrela de Davi. Rios não são gente para serem inumados. Sua casa da eternidade seria o seu próprio leito esvaziado pela estupidez dos homens e crestado pela inclemência do sol.

Dez

Naquela noite do dia da festa da Epifania, estava Abel Cordeiro, abatido e desconsolado, sentado na beira da calçada do casebre que compartilhava com Raquel, os quatro meninos e a filha do meio. Não lhe saía da cabeça o quanto se enganara com o rio. Sempre acreditara que era com ele que conversava nas suas pescarias em manhãs arejadas ou calorentas.
Chegara a conclusão de que havia sido humilhantemente engabelado. Não era a voz rio que escutava. Era talvez a de Zé Pelintra, a entidade mágica por muitos conhecida como caboclo galhofeiro.
Até chorar chorou, o que não era do seu feitio. Somente depois da meia-noite é que foi se deitar. Mas não pregou os olhos. Varou as horas a disputar o lençol com Raquel e a se revirar na cama. O juízo não lhe dava sossego.
Assim ficou até que viu uma réstia de luz que, esgueirando-se através de uma fresta da janela, alardeava o amanhecer. Era o que faltava para que se pusesse de pé, passasse uma água no rosto, vestisse uma muda de roupa e partisse porta afora. Nem deu uma palavra com a mulher que dormia a sono solto e mal esticou a vista para os filhos encolhidos em esteiras enfileiradas na apertada sala da frente.
Iria ao rio, como de fato foi. Pela primeira vez, contudo, em mais de sessenta anos não levara a tarrafa. E não a levou porque sabia, de antemão, que era tempo perdido lançá-la. Não havia peixe a ser pescado.
O que fez foi montar em uma canoa minúscula que mais parecia uma piroga, pôr-se de pé, a meia-nau, entre os costados da embarcação, aprumar-se e começar a remar como se fosse um daqueles homens nus dos tempos em que o rio era altivo e forte, antes que as caravelas aparecessem por lá. Logo alcançou a corrente que insistia em não migrar para outros rios, regatos ou córregos. Somente, então, deitou-se no piso do barco, recolheu o remo e o acomodou ao seu lado, como se fosse a mulher amada. Não escolheu o rumo a tomar. A correnteza que tomasse conta.
Nunca mais se ouviu falar em Abel Cordeiro.

Alcantara (Lisboa), agosto de 2023

About Carlos Mero

CARLOS MÉRO nasceu em Penedo (1949). Membro da Academia Alagoana de Letras, do IHGAL e da Confraria Queirosiana (PORT.). Já integrou o Comité Scientifique da Revue REFLEXOS - Université Toulouse Jean Jaurès – FR.). Principais publicações: O Beco das Sete Facadas e outras estórias alucinadas (Contos). São Paulo: Marco Zero. 2005 - A lua de fel do casal Valhamor (Conto). Revue L’Ordinaire Latino-Americain, nº 212/2010, Université de Toulouse II – Le Mirail. - O amargo regresso da desesperança. Revue Caravelle nº 96/2011 - Université de Toulouse II – Le Mirail - Travessias (Contos - coautora: Cristina Duarte-Simões). Maceió: Viva. 2013 - Graciliano Ramos: Um monde de peines. (Depoimento). Lille (Fr): The BookEdition. 2015 - A deserção de Maíra (Novela), in Inventando Maíra S. Paulo: Scortecci. 2016 - O chocalho da cascavel (Contos). S. Paulo: Scortecci. 2016 - Um gosto de mulher (Poesia). S. Paulo: Scortecci. 2018 (2ª edição) - Dias assombrados em Roma (Memórias). S. Paulo: Scortecci. 2ª ed. 2020 - Contos covidianos. S. Paulo: Scortecci. 1ª e 2ª eds. 2021); Os dois melros (Conto). Rev. de Portugal nº 18/2021; Eça de Queirós e Graciliano Ramos: Diálogo criativo (Palestra: Vila Nova de Gaia - 15.03.2022). Rev. de Portugal nº 19/2022.

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