UM MISTERIOSO CARRO PRETO
   1 de dezembro de 2023   │     9:48  │  0

Um pouco antes da viagem, eu tinha ido bater numa pequena rua de Paris, lotada de bistrôs, livrarias e butiques charmosas. Na época, havia por lá uma sapataria com os calçados mais incrementados do planeta. Eu avistara um arrojado par de sandálias vermelhas, exposto na vitrina. O modelo possuía um salto Luís XV, com perfil côncavo. Paguei com “Novos Francos”, a moeda francesa de então, e saí da lojinha toda satisfeita, carregando uma sacola de papel com o vistoso logotipo da marca. Estávamos em pleno verão parisiense, mais exatamente em junho de 1979.


Uma semana depois, peguei um voo ao lado do meu marido alagoano com quem eu havia casado dois meses antes. Essa ida a New York era a primeira etapa da viagem de regresso do meu esposo após ele ter vivido durante três anos em Paris. Como combinado, deveríamos passar quinze dias na cosmopolita metrópole, antes de pegarmos outro avião para nosso destino final: o Brasil, minha futura nova pátria!
Casada com um norte-americano, engenheiro de aviação, a irmã mais velha do meu amado morava num apartamento que fazia parte de um conjunto de torres espalhado por trinta acres de área verde na cidade de Fort Lee, no estado de New Jersey. Alguns moradores tinham a sorte de ter vista para o rio Hudson e Manhattan. Havia quadras de tênis, piscinas de águas cristalinas, “playgrounds” e, no subsolo, uma lavanderia coletiva. Tornou-se nosso endereço durante as duas semanas de folga antes da viagem seguinte.
De tão perfeito, o lugar aparentava ser o cândido cenário de uma propaganda imobiliária dos anos 60, daquelas destinadas à idealizada família do The American Dream. Logo, senti-me transportada ao mundo quimérico estampado nas caixas e brochuras que acompanhavam os bonecos Ken e Barbie da minha infância. Para completar, à frente do prédio existia uma lanchonete, chamada Callahan´s, oferecendo os melhores cachorros-quentes do universo. Uma indecente salsicha odalisca, toda lambuzada de mostarda e esparramada num pedaço de pão, enfeitava a fachada frontal do comércio.
Uma vez que minha cunhada trabalhava em New York, aproveitávamos a carona diária para zarpar rumo aos incontornáveis passeios turísticos. Se iniciei o texto falando do par de sandálias vermelhas, é que algo inusitado me aconteceu precisamente no dia em que caminhei, pela primeira vez, na movimentada Quinta Avenida: os demais transeuntes ficavam admirando meus pés! Eu caminhando e o povo parando, apontando para os calçados e extravasando sua estupefação: What nice shoes! What nice shoes!
Essa é uma das minhas lembranças favoritas dessa primeira viagem a New York. Era como se eu deambulasse com os cintilantes sapatinhos da Dorothy Gale, a pequena heroína do musical O Mágico de Oz! Aquilo me marcou muitíssimo, pois nunca imaginara tornar-me centro das atenções numa das mais frequentadas artérias do mundo.
Experimentei outra deliciosa sensação no dia em que fomos dar uma volta pelas ruas da cidade, cujos bueiros soltavam uma densa fumaça. Não me lembro de quem era o automóvel conversível, pois só recordo do passeio em si, com as vozes em falsete dos Bee Gees cantando Night Fever. Obedecendo ao meu pedido, a mão do ou da motorista aumentara o volume do rádio. Cabelos ao vento, eu era uma jovem apaixonada vivenciando uma inebriante sensação de liberdade absoluta.
Outra curiosa recordação: na hora de subir no elevador que nos levaria até o último andar do Empire State Building, o ascensorista apontou para mim e, de modo enfático, anunciou: You are french! É que, naqueles tempos, quarenta anos atrás, a população do planeta não era tão padronizada como nos dias de hoje. No quesito vestuário e penteado, cada povo possuía ainda suas peculiares características. No meu caso, tudo em mim evidenciava a procedência parisiense: meu corte de cabelo, meu vestidinho florido e meus estupendos calçados carminados.
Uma das atrações em voga era ir até o Michael’s Pub, nas segundas-feiras, para assistir a Woody Allen tocando clarineta, junto com uma competente jazz band. O local ficava situado no Greenwich Village, bairro eloquente da cidade. Como éramos fãs de carteirinha do neurótico cineasta, não podíamos deixar de ir até lá.
Pouco após a gente se sentar relativamente perto do palco, os músicos chegaram e tomaram seus lugares apropriados. Manifestamente, todos os olhares convergiram na direção do míope franzino que segurava seu instrumento cilíndrico. Conhecido por ser extremamente tímido, Woody manteve a cabeça abaixada e os olhos cerrados durante toda a apresentação. Quando não era sua vez de tocar, ele parecia estar tirando uma soneca. Por esse motivo, não pôde notar uma exuberante moça loira, sentada logo na frente da assistência.
Vestia uma roupa dourada, profundamente decotada. Dona de um par de seios turbinados por Mamãe Natureza, a jovem fazia de tudo para atrair a atenção do ator. Entre outras coisas, ela enfiou o dedo médio inteiro na boca e passou a simular um ato pornográfico! Depois disso, a indecorosa jovem executou uma variedade de gestos obscenos que não surtiram efeito algum, já que em nenhum momento o afamado clarinetista encarou a plateia.
Um dos passeios nos levou até a encantadora cidade de Stamford, no estado de Connecticut. Era, e é ainda, o reduto de pessoas famosas. O aclamado comediante Gene Wilder, astro do filme A Fantástica Fábrica de Chocolate, viveu e morreu num dos casarões centenários do município.
Naquele dia, fôramos convocados para um tradicional brunch de domingo, com direito a churrasco, na casa de uma das primas do meu esposo. Oriunda de Palmeira dos Índios, no interior de Alagoas, Yara era viúva de um executivo da General Electric. Residia numa ampla morada com um verdejante jardim circundando uma piscina de tamanho razoável. Dessa época, possuo um retrato de Yara sentada ao lado de uma imponente lareira em pedra talhada.
Um amigo da família, entretido na abanação das brasas, estendera-me uma espiga de milho de cor amarelo-gema. Seguramente, foi a melhor que provei em toda minha vida. Desde aquele dia, basta farejar o cheiro do cereal cozido para me transportar novamente para junto da piscina de águas turquesa.
Quando retornei a Stamford, poucos anos depois, a cantora Cyndi Lauper comprara uma casa que lhe serviria de refúgio depois de rodar o mundo em estafantes turnês. Conhecida pelos cortes de cabelo radicais e pelo visual alternativo, a icônica artista viveu durante mais de três décadas na mesma rua de Yara. Foi nesse endereço que ela compôs cinco álbuns, assim como a trilha sonora do premiado musical Kinky Boots.
Voltando ao saudoso mês de junho de 1979, veio-me agora à lembrança outro programa pitoresco que aconteceu, de outra vez, em uma bucólica cidade, bastante arborizada. Havíamos sido convidados para um almoço na casa de um casal amigo da minha cunhada. Primeira impressão ao chegar diante do portãozinho do jardim: quase todo o gramado estava coberto por um tapete escuro, que dissimulava por completo a relva inteira.
Além de tapar o verde do mato, o esquisito manto assemelhava-se a um enxame que, em vez de se agrupar em colmeia, decidira-se esparramar e rastejar pelo chão. Tratava-se de um bando de coleópteros que, após formar uma nuvem pesada, resolvera mergulhar no jardim atrás das ervas viçosas, sua comida predileta.
Recepcionados pelos simpáticos proprietários, fomos avançando num caminho de pedras, salvo da invasão dos besouros. Antes de chegar até a porta principal, vi um delicado pássaro sobrevoando a gente. Era um gaio-azul com sua pequena coroa de penas no topo da cabeça. Assim que pousou no galho de uma árvore, soltou um pio estridente de gaivota.
Pouco após adentrar na residência, alguém me chamou para ver algo através da janela aberta, protegida por uma tela antiafídeo. Do lado de fora, havia um pequeno animal mascarado, sentado como uma criancinha. Era um adorável guaxinim, devorando um pedaço de fruta deixado num pires. Fiquei admirada ao vê-lo manipular uma fatia de maçã com suas mãozinhas pretas, incrivelmente humanas!
Enquanto Terry, a dona da casa ítalo-americana, terminava de preparar o almoço, fomos levados até uma pequena sala de visita. Logo após sentar numa poltrona, percebi uma coleção impressionante de tartarugas descansando nas prateleiras de uma cristaleira antiga. Havia quelônios de vidro, de madeira, de metal, de porcelana e até fabricados com lã e crochê. Alguns eram ricamente decorados, outros somente pintados na cor verde-musgo.
Além desse conjunto, reparei muitos outros répteis cascudos em todos os cantos da salinha: no estampado das cortinas, no bordado das almofadas e até no formato do tapete. Como eu era fumante, apaguei meu cigarro num pesado cinzeiro: um cágado deitado, com as quatro patas viradas para cima.
Howard, o chefe da família, era um típico caipira texano. Extremamente afável e falante, veio nos contar uma porção de histórias incríveis, como sua participação no desembarque dos aliados na Normandia, no final da Segunda Guerra Mundial. Aproveitando que a esposa não estava por perto, confidenciou-nos algumas apimentadas recordações.
Entre outras coisas, revelou ter se divertido um bocado com as garotas francesas, todas elas doidas para laçar um caubói do faroeste! Com sorriso malicioso, Howard acrescentou ter visto um grupo de mulheres fazendo topless numa praia qualquer, isso nos idos anos 40! Por fim, o nosso amigo teceu comentários entusiastas a respeito da petulante Patachou, uma cantora que fez muito sucesso no pós-guerra, soltando a voz no seu pitoresco cabaré parisiense.
Durante seus espetáculos, a audaciosa mulher tinha o curioso costume de cortar as gravatas dos clientes que não se comportavam adequadamente. Depois de seccionados, os retalhos eram imediatamente pendurados nas paredes da sua casa noturna. Seduzido pela reputada insolência da artista, Howard dera um jeito de vê-la ao vivo quando, em turnê pelos Estados Unidos, Patachou apresentou-se no Carnegie Hall de New York.
Ao contrário de Howard, ligeiramente corpulento, Terry possuía o frágil biótipo de uma pessoa adoentada. Só de olhar-lhe a cabeleireira, presumi que era artificial. Parecia uma daquelas perucas usadas pelas judias ortodoxas do Brooklyn: um modelo com fios sintéticos e sem divisão, ou risca, pois não havia uma só linha de couro cabeludo aparecendo. Ademais, o penteado inteiro estava meio de banda, como mal encaixado sobre o crânio.
Após enfiar a cabeça na brecha da porta entreaberta, a dona da casa avisou que o almoço estava servido e que precisávamos ir até a sala de jantar. Apontando nossos lugares com a mão, a italiana me fez sentar diante dela. Howard posicionou-se à minha esquerda, tendo minha cunhada na sua frente. À minha direita, meu esposo e, logo defronte dele, estava Nancy, a irmã da anfitriã, que só saiu do quarto quando a comida ficou pronta.
A refeição completa havia sido preparada pela habilidosa Terry: de entrada, graúdos boletos recheados; depois as massas, nadando em untuosos molhos caseiros; a seguir, o suculento rosbife; e, por fim, a torta de nozes. Tudo estava divino! Além da volúpia pelas deliciosas iguarias, senti-me profundamente aconchegada ao lado dessas pessoas tão simples e hospitaleiras. Apesar de eu ser uma forasteira, sem grande fluência em inglês, tive a grata sensação de estar na companhia de parentes queridos, felizes em me reencontrar após anos de ausência.
Pela manhã, antes de deixar o apartamento, meu esposo havia revelado sentir certo medo de Nancy. Só não explicou o porquê. Entendi seu temor, logo após a primeira comida ser depositada sobre a mesa. Sofrendo de um leve déficit mental, a inofensiva Nancy tinha um olhar assassino que me espreitou atentamente durante toda a refeição. Mastigando de boca aberta, eu a vi devorar sua carne com certa avidez canibalesca. Ainda bem que, logo acostumada com seu movimento maxilar de fera sanguinária, esqueci rapidamente a esquisitice da pobre coitada.
Já no caminho de volta, em torno das 16h, escutei meu esposo comentar alguns fatos. Em certa altura da conversa, eu soube que Terry e Nancy haviam comparecido ao casamento de algum primo. Naquela ocasião, um carro preto estacionara diante da casa. O misterioso motorista, camuflado pelo vidro fumê, não saiu de dentro do automóvel, só deu um toque de buzina para avisar sua chegada.
Esse mesmo carro suspeito costumava aparecer ocasionalmente. Trajando suas mais elegantes roupas, as duas irmãs sempre entravam rapidamente no veículo que, logo a seguir, rumava em direção a um destino secreto. Cismada, perguntei por que Howard nunca acompanhava a dupla. Através de Antônio, descobri então que, por não possuir uma só gota de sangue italiano, o texano era banido das comemorações entre os parentes da esposa. Questionei quais eram as desavenças entre ele e os ítalo-americanos.
A espantosa resposta do meu amado me pegou de surpresa: Terry e Nancy eram filhas de um senhor ligado ao clã americano da Cosa Nostra, a temida máfia de New York! Nossa! Por aquilo eu não esperava! Quer dizer que eu tinha passado a tarde na casa de parentes de um Al Capone dos tempos atuais?
Se eu soubesse, eu teria puxado um papinho com a Terry. Eu queria tanto saber de qual, das cinco famílias mafiosas, ela fazia parte: os Bonanno? Os Colombo, os Gambino? Os Genovese ou os Lucchese? Jamais saberei, pois nunca voltei a rever os adoráveis moradores da casinha, com seu tapete de insetos, seu rato-lavadeiro e sua coleção de tartarugas redondinhas.

About Chantal Jeanne Lafaye Frazão

Nossa autora, Chantal Jeanne Lafaye Frazão, nasceu nos arredores de Paris, em pleno baby-boom do pós-guerra. Foi viver na capital quando tinha apenas 21 anos. Pouco depois de se mudar, a jovem cruzou o caminho de um brasileiro chamado Antônio. Assim que colocou os olhos nele, ela soube que o destino havia enfim chegado à sua porta! Em pouco tempo se apaixonaram, casaram-se e foram viver em Maceió, no ano de 1979. Chantal virou rapidamente uma alagoana, aprendeu a preparar uns quitutes nordestinos como carne de sol, feijão tropeiro ou cozido com pirão. Lançou o livro Memórias de Uma Franco-Alagoana em 2019 — obra que, nesse mesmo ano, recebeu o Prêmio Notáveis da Cultura Alagoana, na sua 16ª edição. Mais recentemente, no dia 27 de abril de 2023, Chantal entrou na ilustre Academia Alagoana de Letras, ocupando agora a cadeira 33, anteriormente ocupada pela escritora e poetisa Lyzette Lyra. Acompanhando o esposo alagoano nas suas viagens de negócios, Chantal aproveitou a vida e aprontou em NYC, Londres e outros lugares onde sua curiosidade a fez vivenciar inúmeras aventuras, que soube transfigurar em histórias, através das quais o narrador pega o leitor pela mão e o leva para passear em variegas perambulações pelo mundo afora...

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